Violação divide Estados-membros em nova diretiva europeia
"Pede ao teu primeiro-ministro ou ministros da Justiça [de qualquer país] que perguntem aos cidadãos, sejam homens ou mulheres, se violação é exploração sexual. Eu diria que qualquer pessoa dirá que sim, mas o argumento do Conselho da UE é que a violação não se enquadra no campo da exploração sexual à luz dos Tratados da UE", Frances Fitzgerald
Estamos a falar da proposta da diretiva de combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica da União Europeia com uma das co-relatoras, Frances Fitzgerald, eurodeputada irlandesa. O Gender Calling esteve no Parlamento Europeu e aproveitou para perceber em que ponto de situação está esta proposta, e o que poderá incluir.
Ora, em março de 2022, a Comissão Europeia (o órgão executivo da UE, que pode propor atos legislativos) apresentou uma legislação de combate à violência contra mulheres baseada no género. O objetivo é consagrar "normas mínimas" na legislação da União para criminalizar esta violência, melhorar o acesso à justiça, a proteção e o apoio às vítimas, e assegurar a coordenação entre os serviços relevantes, explicita o documento do PE.
Ou seja, será uma legislação a adotar por todos os países-membros, aliás, o primeiro instrumento jurídico da UE sobre violência contra mulheres baseada no género. Atualmente, "nenhuma forma [desta violência] é criminalizada consistentemente ao longo da UE", diz-se no documento.
A violência dirigida diretamente a uma mulher "por ser mulher", ou que afeta as mulheres desproporcionalmente, – definida como "violência contra mulheres baseada no género" – engloba violência física, sexual, psicológica e, até, económica, manifestando-se em diferentes cenários, como as relações familiares e de intimidade, o local de trabalho, espaços públicos e, ainda, online. Assim, pode tomar muitas formas, tais como "assédio, perseguição, violação, mutilação genital feminina (MGF), violência doméstica, esterilização forçada e femicídio [assassínio de mulher]", nomeia o mesmo documento.
O Parlamento Europeu, através da Comissão dos Direitos das Mulheres e da Igualdade dos Géneros – com a relatora Frances Fitzgerald (do Grupo do Partido Popular Europeu) – e da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos – com a relatora Evin Incir (do Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas) – redigiu um relatório que está, neste momento, sujeito às negociações com o Conselho da UE e a Comissão, para, depois, seguir para votação final em plenário no Parlamento.
Em entrevista ao Gender Calling, Frances avalia o assassinato de mulheres como "um crime muito pernicioso que se desenvolve por toda a Europa e pelo mundo" e acredita ser "uma prioridade enorme de todos os Estados-membros" (E.M.) lidar com esta situação de forma efetiva.
Números de 2014 da Agência dos Direitos Fundamentais da UE permitem ter uma ideia da dimensão do problema. Na União Europeia, 1 em cada 10 mulheres já experienciaram "violência sexual", desde os 15 anos de idade; 1 em cada 20 já foi "violada"; e mais de 1 em 5 já experienciaram violência física e/ou sexual do parceiro ou ex-parceiro. Ainda assim, ressalva-se que "apenas uma minoria dos incidentes são reportados", pelo que a escala do problema "não está refletida nos dados oficiais".
Também analisando números da ONU, de 2021, vê-se que cerca de 45.000 mulheres e raparigas foram mortas pelos seus parceiros ou outros membros da família, em todo o mundo. A Europa acaba por ser o continente com a menor taxa deste tipo de homicídio: 0,6 por 100.000 habitantes mulheres, o que se traduz em 2.500 mulheres.
"Nós temos liberdade de circulação entre os Estados-membros. Se viajar entre diferentes países, eu, como mulher, quero saber se tenho um nível mínimo de proteção no que diz respeito à definição de violação – a questão do consentimento – e aos outros crimes de que tratamos nesta diretiva. Porque não teríamos os mesmos padrões em toda a Europa?"
A pergunta é feita pela relatora Frances, que também é vice-presidente do Grupo do Partido Popular Europeu. Enquanto há países mais avançados, "onde tem havido um grande progresso" na proteção das mulheres, há outros onde nem sequer existe o mínimo de normas, pelo que é fundamental a União adotar um pacote que apoie "todas as mulheres de igual forma", defende.
Então, o que é que a proposta da diretiva prevê? O mais importante é ver quais são as formas de violência, as "ofensas", especificadas e definidas no texto, que teriam de ser criminalizadas pelos E.M. com a adoção da diretiva:
- violação;
- mutilação genital feminina (MGF);
- partilha não consensual de material íntimo (exemplo: fotografias);
- ciberperseguição;
- ciberincitamento a ódio e violência;
- ciberassédio;
Além destas ofensas, o texto inclui outros crimes já definidos em leis existentes, tais como:
- femicídio;
- assédio e abuso sexual;
- perseguição;
- discurso de ódio;
- casamento precoce e forçado;
- esterilização e aborto forçados;
- tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual;
- ciberviolência (como receção de material sexualmente explícito não solicitado);
- violência doméstica.
A criminalização aplicar-se-ia a todas as vítimas (incluindo homens e pessoas não binárias), exceto nos casos das duas primeiras ofensas.
Contudo, o processo de chegada a acordo com o Conselho da UE (o órgão que negoceia e adota as leis, composto por ministros de todos os países) não tem sido positivo, avaliam as relatoras.
Falta vontade política para uma lei mais abrangente
As negociações têm-se debruçado particularmente na extensão das competências da UE para a possibilidade de criminalizar certas formas de violência. Tal como o documento do PE evidencia, a posição adotada pelo Conselho "enfraquece significativamente a proposta", ao querer remover a inclusão da violação e de outros crimes.
Efetivamente, a inclusão da violação é o ponto mais controverso da diretiva. Na proposta, está definida como um "ato de penetração sexual sem consentimento", uma definição "baseada no consentimento". Mas o problema não é a definição. O Conselho justifica que "nos Tratados, não há base legal para definir [este e outros crimes] ao nível da UE". Os Tratados são os acordos vinculativos entre os países-membros que definem as regras de funcionamento da UE.
"Os Estados-membros e seus adidos vêm todos de sítios diferentes e estão a querer assegurar as suas competências", comenta Frances, procurando razões para as atitudes tomadas pelo Conselho. O Parlamento e a Comissão estão fortemente a favor da inclusão de todas as ofensas na diretiva, alguns ministros da Justiça dos Estados é que trouxeram resistências: "Tem a ver com o medo da intrusão no direito criminal, não querem que a UE vá além dos Estados, mas nós achamos que isto está errado".
"Nós precisamos de ter um parágrafo com a definição de violação baseada no consentimento, esclarecendo que tudo o que não seja um 'sim' é um 'não'", defendeu a relatora Evin Incir, eurodeputada sueca, numa conferência de imprensa. "E isto não deveria ser controverso, mas sim a realidade para todas as mulheres."
As relatoras consideram que é "uma escolha política" que está em jogo. "Para mim, é muito claro que eles vão sempre arranjar desculpas em vez de tentar encontrar soluções. Eu vejo isto mais como uma desculpa do que um problema real para os Estados", afirma Evin.
"Os Estados-membros estão a ter uma abordagem muito técnica. Obviamente que conseguiriam fazer uma interpretação mais ampla dos Tratados, se a vontade política estivesse lá", remata Frances, já que "claramente, existe base legal" para esta inclusão.
"Não posso deixar de pensar que isto é um reflexo de uma sociedade ainda bastante patriarcal", Frances Fitzgerald
No entanto, existe ainda outra perspetiva que Frances pensa ser um ponto forte a seu favor. Os casos de abuso sexual infantil e de tráfico humano estão enquadrados como "exploração sexual" ao nível da UE. Ou seja, o Conselho não quer intrusão da UE no direito criminal para incluir a violação, mas "não se importou em aceitar essa intrusão" quando foi necessária para criminalizar os outros dois casos.
"Estamos bem em fazer isto para uma criança vulnerável, mas não estamos bem em fazê-lo para uma mulher vulnerável. É muito estranho", Frances Fitzgerald
Além disto, vale reforçar que a proposta original da Comissão já incluía o crime de violação. Isto tem simplesmente a ver com "prevenção, proteção, acusação, padrões mínimos e a inclusão do consentimento", desabafou a eurodeputada.
Na conferência de imprensa, a 26 de outubro, as relatoras revelaram que Portugal "parece estar a favor" deste tópico, assim como Espanha, Itália e Grécia, entre outros. No entanto, neste momento, “a maioria dos governos dos E.M.” estão contra, revelam as relatoras, num vídeo onde apelam aos cidadãos para se juntarem a esta “luta”: “Precisamos do vosso apoio para garantirmos que o vosso governo concorda em incluir a definição de violação […]. Por favor, contactem os vossos representantes públicos (ministros, membros do parlamento nacional, membros do PE) e chamem-nos à atenção para que nos ajudem a combater este crime tal como deveriam.”
Para que a proposta passe à próxima fase, é obrigatória a maioria qualificada, atingível com duas condições simultâneas: 15 E.M. e representação de no mínimo 65% da população da UE a favor. No entanto, ainda não foi possível. "Dois países com os quais estou muito desapontada são Alemanha e França", que se opõem a este tópico, manifestou Evin. "Nós precisamos que os países grandes estejam do lado certo da história", defende.
"Excluindo a violação, será difícil chamá-la uma 'diretiva de combate à violência contra mulheres', porque a violação é uma das grandes formas de exploração sexual", admite Frances.
"Hoje em dia, não vivemos numa Europa com igualdade de género, por isso, eu espero que esta diretiva contribua para uma Europa mais feminista", Evin Incir
A diretiva já não deverá ser adotada este ano, mas as relatoras querem que seja adotada antes do final do mandato do Parlamento Europeu (em junho de 2024).
O Parlamento Europeu organiza este ano pela quarta vez a "European Gender Equality Week", que pretende reforçar a necessidade de adotar medidas para resolver a desigualdade de género.