Patrícia Cardoso: “As pessoas vivem a situação do aborto em privado porque ainda é um tabu”
Tem 36 anos, trabalhou em diversos meios de comunicação como a Al Jazeera e a revista da Amnistia Internacional enquanto jornalista e produtora, é ativista pelos direitos das mulheres e, em 2020, a sua vida ganhou uma nova causa especial. Patrícia Cardoso optou pela interrupção voluntária da gravidez (IVG) e a experiência trouxe-lhe a vontade de abraçar a luta.
Em entrevista ao Podcast Gender Calling, Patrícia conta que, em maio de 2020, durante o confinamento provocado pela pandemia da Covid-19, descobriu que estava grávida. Decidiu, de imediato, que não queria avançar com a gravidez: “Em plena pandemia, eu descubro que estou grávida de uma relação que tinha acabado de começar. Namorávamos há 3 meses e, apesar de estarmos estáveis e a iniciar uma relação que depois continuou, eram apenas 3 meses. A gravidez, para mim, foi uma surpresa, foi um descuido nosso. Imediatamente (quando vi o resultado positivo no teste de gravidez), eu disse ‘não quero’. Foi uma sensação de rejeição automática. Não era assim (sem planear) que eu queria que as coisas acontecessem. Para mim, foi uma decisão automática, mas para o meu namorado foi uma confusão lidar com a situação. Ele sabia que, naquela altura, (abortar) era a decisão certa”, conta.
Sendo a IVG um procedimento legal em Portugal desde 2007, a entrevistada confessa que ficou em choque quando, ao contactar um hospital, lhe foi negada a opção de exercer o seu direito: “Quando telefonei para o Hospital das Caldas da Rainha e me disseram ‘aqui não fazemos’ foi um choque. É lei, eu votei nesse referendo. Se é um hospital público, como é que não fazem? E eu sou uma pessoa formada com arcaboiço. Imagino as pessoas que não têm formação ou apoio, que não conseguem questionar. Disseram que tinham de me encaminhar para o centro de saúde para depois me encaminharem para uma clínica privada em Lisboa, porque o hospital é objetor de consciência. Perante isto, eu fui procurar a opção mais rápida que seria, então, a Clínica dos Arcos em Lisboa, que é privada”, revela a convidada.
“A objeção é pessoal, ou seja, um médico tem direito a ser objetor de consciência. Se a chefia do hospital se opõe, a instituição acaba por se opor também e isso não pode acontecer. Nós não podemos permitir que uma coisa que está na lei seja aplicada desta maneira"
Ao passar por esta situação, Patrícia constatou que não existe informação suficiente sobre as dificuldades que a mulher tem de enfrentar quando decide interromper uma gravidez: “Ao falar sobre a minha experiência, eu percebi que nós, mulheres informadas e cultas, não temos a mínima noção do que se passa e isto é grave. Ingenuamente, achámos que aquela lei que nós votámos estava lá e que (abortar) era um direito que nos estava assegurado, mas depois começas a perceber as falhas na lei e na sua aplicação. A lei contempla falhas que têm de ser mudadas e nós, hoje em dia, devíamos pensar em melhorar esta lei. Esta lei é aplicada num sistema católico e extremamente patriarcal, que jamais deveria acontecer”, defende.
A jornalista argumenta que uma das principais questões desconhecidas da população, relativamente à aplicação da lei da IVG, prende-se com a “objeção de consciência”, ou seja, apesar de ser legal interromper voluntariamente a gravidez, nem todos os serviços públicos e médicos aceitam fazê-lo, proclamando-se “objetores de consciência”: “A objeção é pessoal, ou seja, um médico tem direito de ser objetor de consciência. Se a chefia do hospital se opõe, a instituição acaba por se opor também e isso não pode acontecer. Nós não podemos permitir que uma coisa que está na lei seja aplicada desta maneira. Não tem havido um olhar crítico sobre a aplicação desta lei. Temos um Ministro da Saúde que diz que as mulheres até preferem sair do seu distrito para a IVG, porque têm vergonha de o fazer. E nós, media, damos lugar a estas palavras sem um contraditório. O que ele está a dizer é mentira”, afirma Patrícia Cardoso.
Com o objetivo de, segundo a entrevistada, quebrar o tabu que ainda é o aborto, fornecer informação útil às mulheres e tornar menos difícil o processo da IVG, Patrícia decidiu abraçar esta luta e dar início àquela que será a Associação Escolha: “As pessoas estão a viver a situação do aborto em privado, porque ainda é um tabu. Quando tu começas a falar sobre o assunto, as pessoas vêm ter contigo e partilham a sua história. Então, porque é que nós não estamos a falar sobre isto? Portanto, nós, mulheres, temos de iniciar uma conversa aberta a todas. Não é uma vergonha, é uma escolha. Eu tenho todo o direito de escolher quando é que vou ser mãe. Para além disso, esta escolha pode até ser das duas pessoas, mas as justificações vão sempre cair sobre a mulher. Isto é outra coisa que eu quero mudar com a associação Escolha”, explica a entrevistada.
Para além de partilhar connosco esta luta feminista tão importante na sua vida, Patrícia fala abertamente sobre as questões de saúde mental e o problema que enfrentou com o álcool: “Eu sempre fui uma pessoa muito carente. Encontrava outros agregados familiares que me preenchiam de uma forma que a minha família não preenchia. Os meus pais fizeram o melhor e eu não seria ninguém sem eles, mas a minha casa não era um lugar seguro. Agora, com terapia, percebo o impacto que isso teve. Percebo porque é que, mais tarde, eu tive o diagnóstico de transtorno de personalidade Borderline. (Com este transtorno) tu tens que chegar ao teu limite sempre, viver numa urgência para te sentires aceite, para sentires que és válido. Isto leva-te a excessos muito graves desde muito cedo. No meu caso, foi o álcool. Eu bebia muito para amortecer os sentimentos. Não queria ser eu e isso é muito triste. O alcoolismo era apenas uma parte. Eu estava deprimida há muito tempo”, recorda a ativista.
Patrícia revela, ainda, que estes problemas culminaram numa tentativa de suicídio que a despertou para a necessidade de mudar a sua vida: “Perante um envolvimento muito tóxico e condições de trabalho muito precárias, em 2019, há um momento de desespero que se veio a manifestar numa tentativa de suicídio. A partir desse momento, eu decidi que aquilo tinha que acabar”.
Numa conversa forte, que aborda temas sensíveis, Patrícia Cardoso partilha a sua história enquanto pessoa e mulher com todas as suas lutas e fragilidades, confessa não querer ser mãe e alerta para a urgência de se falar sobre o aborto e de se apoiar as mulheres que, no seu direito, decidem fazê-lo.
Entrevista disponível no Podcast Gender Calling em todas as plataformas de áudio.