"Se a mutilação é feita em meninas que nascem em Portugal, é uma questão portuguesa"
Entre 2018 e 2021, foram registados 433 casos de mutilação genital feminina (MGF) em Portugal, revela o mais recente relatório da Direção-Geral da Saúde (DGS), citado pelo Diário de Notícias. O número referente a 2021 – 138 casos – representa um recorde desde o início do apuramento destes casos, descobertos nos centros de saúde e hospitais portugueses, em 2013. Este resultado estará relacionado com a capacidade dos profissionais de saúde, explicita Carla Martingo, especialista na área da MGF, ao Gender Calling.
Atualmente, os profissionais são objeto de uma formação intensiva e passaram a ter de registar os casos encontrados, refere Carla, que acrescenta que isso não significa que tenha aumentado o numero de casos. Quer dizer, sim, que há mais pessoas a notificar. É importante esclarecer que, destes registos de mutilação, não há dados da realização de mutilação em solo português, sublinha Carla, que ocupa o cargo de dirigente associativa da P&D Factor (associação portuguesa para a Cooperação sobre População e Desenvolvimento, sem fins lucrativos).
Os casos registados pela DGS são de mutilações realizadas no país de origem de comunidades migrantes, explica Carla, sendo que as crianças (nascidas em Portugal) de mães emigradas são levadas ao país de origem e é aí que são sujeitas à mutilação, na infância ou na adolescência. O facto de a quase totalidade dos casos terem sido reportados por unidades da região de Lisboa e Vale do Tejo, segundo o DN, justifica-se simplesmente por ser a zona onde está concentrada a maior percentagem de migrantes.
O Gender Calling falou com Carla Martingo para nos inteirar da realidade da MGF em Portugal, tendo em conta que está a fazer um doutoramento nesta área, além de ocupar os cargos de técnica superior da área social e de conselheira para a igualdade na Câmara Municipal de Oeiras.
Acha que o valor real de vítimas de MGF, registadas em Portugal, tem diminuído ou mantido uma tendência constante ao longo dos últimos anos?
Carla Martingo (C.M.): Eu acho que cada vez há mais mulheres a oporem-se à prática. As velhas gerações – que, no fundo, são as guardiãs da cultura e as que mais defendem esta prática – vão morrendo, e as novas gerações – isto tanto em países de origem como de destino, mas sobretudo nestes últimos, – têm contacto com modelos e sociedades que não realizam a prática. Na Europa, os estudos têm demonstrado que uma vez que a mutilação não é feita no país para onde as jovens emigraram e as crianças nasceram, elas sentem que não faz sentido que as suas filhas sejam submetidas, porque, lá está, no país para onde foram viver o procedimento não acontece. Por exemplo, o contacto com comunidades islamizadas onde, de facto, o islamismo não advoga a prática e onde as pessoas não veem os muçulmanos a realizá-la tem levado a que mutilação tenda a diminuir.
Entre 2018 e 2021, 43% dos casos foram registados no âmbito da vigilância da gravidez. Porque são detetados nesta fase, digamos, já avançada da vida da mulher?
C.M.: Geralmente, nas comunidades migrantes que praticam a mutilação, não há uma promoção da saúde: não há a cultura de ir aos cuidados de saúde primários, nomeadamente. Ou seja, são mulheres que, muitas vezes, não são acompanhadas durante a gravidez, ou quando são, as pessoas que acompanham não conseguem ver que a mulher tem uma mutilação, ou, ainda, vão aos hospitais já quando vão ter o bebé, e é aí que, de facto, os casos são assinalados.
Quais são os problemas mais graves, em termos de saúde, que as sobreviventes apresentam?
C.M.: Em casos extremos, pode haver dificuldades durante o parto e a necessidade de sujeitar a mulher a uma cesariana, para prevenir a morte do bebé e da mãe. Outras situações por que elas passam são as infeções recorrentes do trato vaginal e urinário. Há, ainda, sequelas a nível mental, que nem são estudadas com deveriam ser: temos vítimas que experienciam sentimentos de stress pós-traumático e há quem revele que não tem uma vida sexual prazerosa, não sentindo prazer – já que, em alguns tipos de mutilação, é retirado o clitóris (que é um órgão estimulador). Os problemas começam logo no momento em que são excisadas, onde pode haver grandes hemorragias que levarão a anemias e a outros problemas que as acompanham ao longo da vida.
As mulheres conseguem ter prazer sexual? Existe alguma forma de voltarem a poder experienciá-lo?
C.M.: O prazer não é exclusivamente clitoriano, há outras formas de prazer, pelo que depende do tipo de mutilação. Quando há uma excisão total do clitóris, será difícil atingir o prazer, porque é um órgão muito estimulador; mas há casos de mulheres que foram "infibuladas" (ligação dos lábios para o estreitamento do orifício vaginal) e "defibuladas", situações em que o clitóris estava intacto e, assim, podem sentir prazer; a remoção de uma pequena parte do clitóris pode, também, não interferir no prazer.
O que é que as mulheres que foram submetidas à prática sentem em relação à MGF?
C.M.: Aqui em Portugal, as mulheres que eu tenho entrevistado e contactado são contra a prática e não fazem às filhas – ainda que haja casos em que as filhas foram sujeitas à mutilação, mas as mães não puderam fazer nada, porque, muitas vezes, as mulheres não têm voz ativa, é a família do marido que obriga a que as crianças sejam submetidas. Existem, ainda, mulheres que não sabiam ao que iam e foram enganadas, já que existe um ritual de festa à volta da mutilação, existindo muitos casos em que meninas se submetem voluntariamente à prática para depois terem ofertas no final, como roupa, comida melhor e uma festa em sua honra: porque tudo isto é muito importante para estas meninas
Tem conhecimento de alguma mulher que não soubesse que tinha sido submetida à mutilação?
C.M.: Não. Mas há mulheres que, por uma questão de defesa mental, esqueceram essa parte da sua vida, não se recordam, não porque não queiram, mas sim porque é uma defesa para lidar com a situação, tem a ver com a questão do trauma. Mas sabem.
Como é que Portugal pode ajudar na luta mundial contra a MGF?
C.M.: Só o facto de a mutilação ser feita em meninas que nascem em Portugal já se torna uma questão portuguesa, somos uma cidadania global. O trabalho feito em Portugal – seja por organizações governamentais e não governamentais, municípios, grupos informais – tem contribuído para se falar muito mais e, hoje em dia, já se fala abertamente sobre este assunto. Igualmente, cada vez mais os profissionais de saúde estão alerta, já que têm sido amplamente formados (até com várias pós-graduações) para isto; e também ao nível da educação, com as várias orientações propagadas para polícias criminais e juízes. Tem sido um trabalho meritório e é muito importante que tenha, até, duas dimensões: as comunidades que estão na diáspora e a articulação com os países de origem, porque quando as populações migrantes se deslocam aos seus territórios, levam as práticas, e a verdade é que quem ficou no país de origem olha para as comunidades que migram como um exemplo. Portanto, se o trabalho nos países de destino for bem feito, repercussões vão ter lugar. Tem-se, até, visto isto com o caso da Guiné-Bissau, pois tem sido feito um trabalho em Portugal articulado com o país e as suas associações.
Carla Martingo, 53 anos, é técnica superior na câmara municipal de Oeiras na área social; conselheira para a igualdade da câmara municipal de Oeiras; dirigente associativa da AJPAS (Associação portuguesa de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde); dirigente associativa da P&D Factor (Associação portuguesa para a Cooperação sobre População e Desenvolvimento); e está a fazer um doutoramento na área da mutilação genital feminina.