Mónica Ferro: “A luta pela verdadeira emancipação, pela autonomia total da mulher, ainda enfrenta muitas barreiras”

Mónica Ferro: “A luta pela verdadeira emancipação, pela autonomia total da mulher, ainda enfrenta muitas barreiras”
Aos 44 anos, Mónica Ferro deixou Portugal para abraçar um desafio na ONU, em Genebra. No "Dona da Casa", conta como foi a decisão e a mudança na família.

Foi deputada e vice-Presidente da bancada do PSD, secretária de Estado da Defesa,  coordenadora do Grupo Parlamentar sobre População e Desenvolvimento e professora universitária. Mónica Ferro conta com um currículo extenso e podemos vê-la, atualmente, como Diretora do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), em Londres. Considera-se uma mulher de causas, que acredita que a empatia é o valor estrutural da humanidade.

As Lutas Feministas

Ao longo das últimas décadas, muitos foram os movimentos e lutas feministas abraçados por diferentes comunidades em diversos países. Em alguns casos, os progressos foram muitos, mas noutros ainda existe um longo caminho a percorrer no que diz respeito aos direitos das mulheres, defende Mónica Ferro.

A convidada do Programa Dona da Casa fala-nos sobre este tema e sobre as diversas perceções que existem acerca das lutas feministas, dependendo do contexto em que nos inserimos: “Há um pouco a perceção de que as lutas das mulheres foram todas sendo realizadas – eu digo isso muitas vezes. Nasci em 1972 e assisti, nos últimos anos, a uma espécie de ‘compilação de direitos’, ou seja, assisti ao direito ao voto, à educação, autonomia financeira, que vão sendo acrescentados. Portanto, isso deu-nos uma sensação de progresso, um progresso cumulativo de direitos realizados e, talvez, nos tenha deixado com esta ideia de que o caminho era esse – um caminho de consolidação de direitos. Agora temos esta noção de que, na realidade, há direitos que estão em causa, que estão a retroceder", sublinha.

"Nós temos dados do Fundo das Nações Unidas para a População (que mostram) uma série de lutas que permanecem distantes de estarem realizadas"

Para que possamos perceber, na prática, como é que alguns direitos das mulheres ainda estão longe de serem garantidos, Mónica traz-nos um exemplo de um inquérito feito pela agência da ONU: “Nós perguntámos às mulheres 3 questões para identificarem o que é a autonomia corporal e as perguntas eram muito simples: 1. Pode dizer que não a ter sexo?; 2. Pode escolher o método de contracepção que quer? e 3. Pode procurar o médico sempre que quer? E apenas 54% das mulheres nos responderam que sim. O que significa que (quase) metade das mulheres nos respondeu que não a pelo menos uma destas perguntas. Isto significa que a luta pela verdadeira emancipação, pela autonomia total da mulher, nesta matéria, ainda enfrenta muitas barreiras, em muitas partes do mundo”, conclui.

Falta Consciência para Algumas Questões Feministas?

Questionada sobre a razão de, por vezes, faltar alguma sensibilidade na sociedade para temas como a autonomia corporal ou a mutilação genital feminina, a entrevistada responde: “Eu estou muito habituada a pensar na emancipação da mulher e nas lutas feministas englobando essa agenda toda. Percebo que aquilo que está aqui muito em causa é uma certa visão centrada na nossa realidade e encontro isso muitas vezes, aqui e noutras partes. Estive em Genebra 6 anos e meio e agora estou em Londres, portanto, as conversas que se tem nestes ambientes, muitas vezes, parecem trazer para estes contextos outras realidades. É como se nós abríssemos uma janela sobre as disparidades que outras mulheres, noutras latitudes, enfrentam. Nós (UNFPA) tentamos mostrar que as grandes desigualdades acontecem dentro dos países e acontecem de uma forma global, mas tentamos trazer outras lutas dizendo que o progresso é real. Nos últimos 30 anos, fizemos progressos assinaláveis em quase todas as esferas da luta feminista e da luta pelos direitos humanos num sentido muito amplo. Mas a verdade é que houve uma série de pessoas que, como nós não conseguimos desmantelar as estruturas do racismo, do patriarcado, da discriminação económica, não conseguimos chegar até elas”, admite.

Mónica Ferro acrescenta ainda: “Mais, se quiser ser mais dura, ainda, com a nossa incapacidade de o fazer (de não terem desmantelado certas estruturas), nós fizemos com que essas pessoas ficassem ainda mais para trás porque o progresso que nós temos para mostrar, em muitos contextos, é um progresso (que ocorre) nos sítios onde já conseguimos chegar às  pessoas. A invisibilidade é a maior discriminação de todas. Aquilo que não é contado não é tido em conta, não é resolvido. E, onde trabalho, o nosso mantra é sempre esse: toda a gente tem de ser contada”.

"Nem sequer termos noção das outras mulheres, dos outros grupos, é a maior discriminação de todas"

As Questões Feministas em Países Desenvolvidos

Mónica Ferro trabalha diretamente com 5 países considerados desenvolvidos – Portugal, Espanha, Itália, Irlanda e Reino Unido – que são dos mais bem posicionados em indicadores de saúde sexual e reprodutiva, saúde materna, casamentos infantis, entre outros semelhantes. A questão que se coloca é se os valores nos rankings se refletem de forma homogénea na prática do dia a dia destes mesmos países: “Nestes 5 países, a igualdade e o acesso à saúde sexual e reprodutiva, e aos direitos sexuais e reprodutivos estão plenamente consagrados na lei, não há dúvida nenhuma. (…) Depois, o que notamos é que a transposição desses compromissos para a prática falha ou porque os serviços não são prestados, ou porque as políticas públicas não garantem igualdade de acesso para todos, ou porque há fenómenos. Por exemplo, neste último relatório (da UNFPA) verificámos que, quer nos EUA, quer no Reino Unido, as mortes maternas das mulheres africanas e de ascendência africana são muito superiores ao seu grupo equivalente branco. E isto tem a ver com o acesso aos cuidados de saúde (destas mulheres), mas também com algo mais interessante do ponto de vista da ação política, isto é, erros nos currículos médicos, perceções generalizadas sobre a saúde das mulheres, com preconceitos como o patamar de dor (destas mulheres) ser diferente. As médias mascararam as realidades nacionais”, relata a convidada.

O Custo Económico da Desigualdade de Género

No que concerne às questões da desigualdade de género, a entrevistada elucida os ouvintes do podcast / videocast sobre o custo económico para os países, e defende que o investimento na igualdade de género é um investimento com retorno: “Devemos preocupar-nos (com as mulheres que estão inseridas em realidades diferentes das nossas) também porque faz sentido do ponto de vista do equilíbrio global – a desigualdade de género tem um custo económico efetivo para os países. Neste relatório (da UNFPA), ousamos medir o custo da desigualdade de género, da violência com base no género. Tentamos sempre trazer os dados do investimento. Por exemplo, se nós conseguíssemos diminuir as gravidezes não desejadas, gastando cerca de 80 mil milhões de dólares em países de baixo e médio rendimento, até 2030, conseguimos evitar cerca de 400 milhões de gravidezes não planeadas, sendo que isso também nos iria permitir prevenir um milhão de mortes maternas e cerca de 600 mil milhões de dólares em benefícios económicos”.

"Eu acho que é uma narrativa que nas políticas públicas devia ser usada que é: o que nós investimos na igualdade de género, na garantia de acesso à saúde sexual e reprodutiva é um investimento com retorno"

A Diretoria da UNFPA acrescenta, ainda: “Outro exemplo (do retorno no investimento nas questões de género), é a questão do planeamento familiar: nós sabemos que por cada dólar investido em planeamento familiar pode gerar um retorno de cerca de 100 dólares ao longo do tempo, porque vai permitir às mulheres terem autonomia sobre o seu corpo, continuar a estudar e adiar a gravidez. Sabemos que o próprio controlo da fertilidade, no sentido de poder planear as gravidezes, é fundamental para que as mulheres possam ter uma carreira”, exemplifica.

A Mutilação Genital Feminina e a Consciencialização das Comunidades que a Praticam

Em todo o mundo, existem mais de 200 milhões de meninas e mulheres que vivem diariamente com as consequências da mutilação genital feminina – uma prática ancestral que consiste no corte total ou parcial do clitóris e/ ou dos pequenos e grandes lábios. É baseada na ideia da submissão da mulher, que se acredita que será mais "pura" se for mutilada, assim como "mais aceite" para o casamento.

Mónica Ferro explica-nos como é que podemos desconstruir esta ideia e consciencializar as comunidades em que esta prática ainda está enraizada: “O Fundo das Nações Unidas para a População gere com a Unicef dois grandes programas mundiais que têm muito que ver com isto: o programa mundial para a mutilação genital feminina e o programa para a eliminação de casamentos infantis forçados e precoces. Ou seja, embora sejam realidades distintas, ambos carregam essa responsabilidade de serem percebidos por muita gente como práticas culturais. Tentamos afastar daqui a linguagem da cultura, porque isto não é cultura. Isto é uma violação de direitos humanos. A única coisa boa é que esta ideia foi construída e nós podemos desconstruí-la, indo às raízes e trazendo vozes das sobreviventes. Temos também trazido para a conversa os líderes religiosos, porque há uma crença de que esta prática pode ter algum contexto religioso e não tem – não há provas de que Maomé o tenha mandado fazer a qualquer uma das suas filhas e não está no Corão. A última linha de atuação que nós fizemos foi trazer os homens e os rapazes para a conversa. Esta mudança de mentalidades também se faz recorrendo aos protagonistas”, afirma a convidada.

"As pessoas têm de perceber que estamos a falar de normas sociais: uma menina que não seja sujeitada à prática é vista, muitas vezes, como sendo impura"

Numa conversa que traz a palco temas tão urgentes de serem abraçados e resolvidos, Mónica Ferro fala-nos sobre causas feministas, desigualdade de género, saúde materna, mutilação genital feminina, estratégias para consciencializar comunidades, o seu percurso profissional, a coragem para mudar de vida aos 44 anos e a sua vontade de lutar por causas importantes.

"Dona da Casa" - São artistas, deputadas, atletas, empresárias e líderes. Têm destaque público, são donas da sua vida e provam que se pode ter vários papéis. Catarina Marques Rodrigues guia conversas sem filtros com mulheres, mas não só. Disponível em antena3.rtp.pt, RTP Play, Spotify, Apple Podcasts e YouTube da Antena 3.