Marina Machete: “O apedrejamento foi uma coisa que me marcou para o resto da vida, porque nunca pensei que isso pudesse acontecer”

Marina Machete: “O apedrejamento foi uma coisa que me marcou para o resto da vida, porque nunca pensei que isso pudesse acontecer”
O que é ser trans, o bullying que viveu na infância, a reação da família, as relações amorosas e a saúde mental foram alguns dos temas deste episódio do "Dona da Casa"

Tem 28 anos, trabalha como assistente de cabine numa companhia aérea mas foi enquanto Miss Portugal 2023 que se tornou conhecida do grande público. Marina é a primeira mulher trans a ganhar o título de Miss Portugal e representou o país no concurso Miss Universo, onde ficou entre as 20 primeiras selecionadas e se destacou pela sua história de vida repleta de força, coragem e confiança.

A Infância e a Aceitação da Família

Foi com cerca de 4 anos que a convidada do Programa "Dona da Casa" começou a aperceber-se da ausência de sintonia que existia entre a forma como se sentia e o modo como a sociedade a via, sendo nas personagens femininas da televisão que Marina encontrava a sua referência: “Eu acho que todos nós temos referências e nos identificamos com pessoas na televisão e eu identificava-me especialmente com as personagens femininas – eram a minha essência. Se calhar, os membros masculinos da minha família, também pela sociedade em que vivemos e a sua masculinidade frágil, acabavam por se afastar de mim porque sentiam aquela energia feminina. Sentiam que eu me aproximava mais das mulheres, que tinha comportamentos que eram considerados mais fracos, mais femininos e eu não via essas diferenças”, conta a entrevistada.

Relativamente à aceitação da família, Marina destaca a dificuldade que o pai teve em lidar com todo o processo: “A minha mãe comprava-me Barbies às escondidas porque não queria o confronto com o meu pai. Ela sabia que aquilo era a minha essência, mas que não era aceite pelos demais. Tanto por parte do meu pai, como do meu avô e irmão, eu comecei a sentir essa energia (de que não encaixava no modelo que era visto como certo). Eu sabia que era de uma forma inocente que eu falava, me mexia e existia, mas que eles viam algum tipo de maldade naquilo que eu era e comecei a esconder esse comportamento. O meu pai nunca conseguiu confrontar-me. Mesmo hoje, ele aceita tudo isto, mas não gosta de falar sobre o assunto. Ele também teve que lidar com o peso que a sociedade lhe pôs em cima. Até hoje, mesmo depois de eu ser Miss Portugal, as pessoas continuam a ver com alguma estranheza e foi a pressão da sociedade, acima de tudo, que causou o afastamento (do pai)”, confessa.

"(O meu pai) passou a página quando eu passei a ser a Marina, mas esse passar a página foi muito doloroso para ele"

O Bullying na Escola

A entrada na escola é quase sempre um momento desafiante para qualquer criança, mas para uma que está a descobrir a sua identidade de género, num sistema que ainda exige, tantas vezes, a divisão entre o “masculino” e o “feminino”, pode ser bastante árduo. Marina fala-nos sobre a sua experiência e partilha as adversidades que enfrentou na altura: “Inicialmente, fez-me confusão essa pressão que faziam à minha volta para eu me encaixar de um lado ou de outro e realmente eu comecei a perceber pelos outros, e por essa pressão, que eu não era ‘normal’, por assim dizer. Comecei a aperceber-me pela pressão dos rapazes e pelo facto de a aceitação das raparigas não ser total. Por exemplo, (quando estava junto de um grupo de raparigas) diziam-me ‘Ai Marina, não podes ouvir isto que é só para meninas’. Desde muito nova, diria desde os 6/7 anos, que eu fui completamente rejeitada por todos os rapazes em qualquer turma que estive na escola”.

"Havia certos momentos em que eu me sentia rejeitada – sentia que não pertencia a nenhum lado a 100%"

Marina relata, ainda, outros momentos duros que resultaram em vários ataques físicos: “Gritavam o nome que foi atribuído à nascença, como forma de humilhação, mandavam-me água nos balneários, sempre para demonstrar que eu não pertencia ali. Tive que deixar de usar o balneário, estive 1 ano a utilizar uma casa de banho à parte e depois passei para o balneário das raparigas. (…) Fecharam-me num cacifo, numa ‘brincadeira’, mas claro que não o era. (…) Sempre tive medo de espaços fechados e eram daqueles cacifos que não estavam presos à parede, portanto, quando mandaram o cacifo ao chão (com Marina lá dentro) eu não aguentei e perdi os sentidos completamente. Aí comecei a perceber que aquele espaço (a escola) não era seguro para mim”, recorda.

O Apedrejamento

Perante todos os episódios traumáticos pelos quais Marina passou, e pela insegurança que naturalmente sentia num espaço onde era rejeitada, a entrevistada decidiu mudar de escola. Não obstante, numa última ida à instituição antiga, acabou por vivenciar aquele que foi, segundo Marina, um dos momentos mais marcantes da sua vida: “O apedrejamento foi uma coisa que me marcou para o resto da vida, porque nunca pensei que isso pudesse acontecer. Fui à escola para assinar os papéis (da transferência) e, quando saio, começo a ouvir chamarem-me nomes, tentei caminhar até ao autocarro para voltar para casa e, nesse momento, acontece o apedrejamento. (Os atacantes) só se afastaram quando uma pedra bateu num carro, ou seja, para eles foi mais alarmante um dano a um bem material do que a um ser humano, que era eu. Era importante para eles mostrarem uns aos outros que ‘aquilo’ era algo com o qual não concordavam e que queriam repudiar ao máximo", relembra.

Ser Miss Portugal e as Ameaças de Morte

Apesar de ter sido apenas no ano passado que ouvimos falar em Marina, graças ao concurso Miss Portugal, a nossa convidada já havia lutado pelo sonho de ser modelo por cerca de uma década, mas confessa que o facto de ser uma mulher trans se apresentou como uma barreira no mundo da moda: “Ao longo dos últimos 10 anos fiz castings onde não passei, conheci algumas pessoas a quem acabei por contar que era uma mulher trans e isso acabou por impedir o meu agenciamento em 3 agências”, relata.

Marina Machete partilha também o que a fascinava no concurso Miss Portugal e alguns dos momentos difíceis que passou, que culminaram em comentários negativos e ameaças de morte: “O que me fascinava no facto de ser Miss era poder partilhar a minha história; estes concursos já não são tão focados na beleza feminina, são muito mais sobre oratória, sobre capacidade de comunicar, quantas línguas uma candidata fala, projetos sociais. Para podermos participar no concurso temos de ter uma ação social que tem de ser contundente, tens de ter feito um plano de ação, criado conteúdos para as redes sociais, entre outras coisas. No meu caso, a minha causa social prende-se com a comunidade trans. O ano passado também foi o primeiro ano em que foi permitido mulheres casadas e com filhos participarem. Eu cheguei ao Miss Universo com uma trajetória completamente diferente (da maioria das concorrentes). Durante 3 semanas, em Portugal, fui bombardeada com comentários, ameaças de morte, emails agressivos, tentaram comunicar com a minha família, invadir a minha privacidade. Acho que o foco das críticas era mais por eu ser uma mulher trans e não tanto pela minha imagem, embora tenha sido também bastante criticada neste sentido", explica.

"Fico a pensar no que teria acontecido se não tivesse dito a ninguém que era uma mulher trans”

A História do Nome Marina

Entre outros temas, a Miss Portugal 2023 compartilha ainda o que a levou a escolher o nome “Marina” desde criança: “Desde pequena que gostava muito da história original da Pequena Sereia dos irmãos Andersen, que acaba com um final muito triste e a minha infância também o foi. No início da minha adolescência, eu identificava-me muito com esse conto em que a Pequena Sereia se chama Marina. No final da história, ela não fica com o príncipe, transforma-se em espuma, num espírito e vê o príncipe casar com outra rapariga. Mesmo sendo triste, dava-me esperança de alguma forma”.

Numa conversa tocante e em que aborda um tema tão relevante, Marina leva-nos à sua infância e adolescência, às dificuldades que sentiu ao longo da vida, fala sobre o risco de depressão e de suicídio na comunidade trans, a falta de informação que ainda existe sobre este tema, a diferença entre identidade de género e orientação sexual, a vida amorosa e a experiência de vencer o concurso Miss Portugal.

"Dona da Casa" - São artistas, deputadas, atletas, empresárias e líderes. Têm destaque público, são donas da sua vida e provam que se pode ter vários papéis. Catarina Marques Rodrigues guia conversas sem filtros com mulheres, mas não só. Disponível em antena3.rtp.pt, RTP Play, Spotify, Apple Podcasts e YouTube da Antena 3.