Mariana Mortágua: “Um político não agrada a toda a gente o tempo todo e nunca é consensual”

Mariana Mortágua: “Um político não agrada a toda a gente o tempo todo e nunca é consensual”
Mariana Mortágua foi a convidada de Catarina Marques Rodrigues no "Dona da Casa"

Doutorada em Economia pela Universidade de Londres, militante do Bloco de Esquerda (BE) desde 2007 e deputada na Assembleia da República desde os 27 anos, Mariana Mortágua foi eleita Coordenadora Nacional do Bloco de Esquerda em maio de 2023 com mais de 80% dos votos, sucedendo a Catarina Martins que esteve 11 anos à frente do partido.

O Início da Vida na Política

Em 2013, Mariana Mortágua foi uma das mais jovens mulheres a iniciar um percurso profissional na política portuguesa. Com apenas 27 anos, a convidada do Programa Dona da Casa, tornou-se deputada à Assembleia da República pelo partido Bloco de Esquerda e viu o princípio da sua carreira ser marcado por uma enorme notoriedade.

Um dos episódios mais mediáticos que protagonizou foi na Comissão de Inquérito à queda do BES, em 2015, onde a prestação da deputada foi altamente elogiada. Questionada sobre se as razões destes elogios se prenderam com a sua postura ou com o facto de ser uma mulher jovem, na altura, a confrontar os gigantes da banca, Mariana responde: “Provavelmente foi um misto das duas. A miúda que enfrentou os poderosos tem sempre uma boa narrativa mediática, mas para enfrentar poderosos também é preciso… quer dizer, não é preciso, mas é melhor estar-se preparado. (…) Eu, na verdade, estava muito focada em fazer aquela Comissão de Inquérito porque me dava muito prazer, porque era muito importante para mim politicamente, não pelo meu percurso político, mas pelo significado daquela Comissão de Inquérito para a economia portuguesa, para a história portuguesa, até para a história das desigualdades, das elites portuguesas”, afirma a convidada.

Ainda sobre o protagonismo repentino que teve após a Comissão de Inquérito, a atual Coordenadora do BE assume: “Eu sou e sempre fui muito realista relativamente ao protagonismo e à popularidade. Um político não agrada a toda a gente o tempo todo e não é consensual, nunca. Se é consensual é porque não está a defender as suas ideias e porque está sempre a tentar conceder nos seus valores ideológicos. E essa é uma coisa que eu fui aprendendo ao longo do tempo, precisamente porque tive uma entrada na política que foi de uma popularidade muito rápida e também de algum consenso. E eu sempre tive um bocado a consciência e a noção de duas coisas: primeiro, que esse consenso se pode dissipar muito rapidamente e quem admira a tua postura hoje por uma razão, amanhã estará a criticar-te porque tomaste uma posição. Quem toma uma posição, por norma, corre o risco de ter pessoas conta si – é assim que é a democracia, é assim que é a vida. E, em segundo lugar, que a popularidade – a onde que se gera, que depois é alimentada por jornalistas, por comentadores – é uma coisa que vai e vem”, destaca.

"(A popularidade) sobe e desce muito depressa e não vale a pena habituarmo-nos muito a ela"

Os Comentários Negativos no Plenário e A presença do Partido Chega na Assembleia da República

Relativamente aos relatos que surgiram nos últimos meses acerca de insultos dirigidos a mulheres e ao ambiente tóxico vivido no Parlamento, a entrevistada partilha: “Eu posso ser sincera, eu desligo os ouvidos a comentários nos corredores do Parlamento. Sei que há e é óbvio que os ouço ao fundo. E não são simpáticos. E sei que há especialmente dirigidos a mulheres e que há também o desrespeito. Eu sei que é verdade, o Chega desrespeita muita gente na Assembleia, mulheres e homens. E isso vê-se mesmo em debates na televisão, a forma como muitas vezes é feito o confronto com as mulheres no Parlamento”.

"Há um desrespeito muito profundo pela figura feminina e pelo papel das mulheres"

Sobre a presença do partido Chega, formada por 50 deputados, na Assembleia da República, Mariana salienta: “Eu acho que nós não devemos centrar a nossa crítica ao Chega só pelo ambiente tóxico que instalou na Assembleia da República. Preocupa-me mais o ambiente tóxico que instalou na sociedade. (…) Não só pelas ameaças concretas aos direitos das mulheres, o aborto é uma delas, o financiamento de associações que combatem a discriminação de género, a violência doméstica são outro dos campos de ataque do Chega. Mas acho que o Chega, o que fez foi fazer com a misoginia e com o machismo o mesmo que fez com o racismo. Que foi dar, no fundo, uma permissão e uma legitimação política e pública desse tipo de discursos que agora são considerados como, enfim, mais uma opinião – e isso é que é perigoso. (…) A linguagem tem a sua função e eu também quero liberdade para poder usar a linguagem. (…) Acho que deve haver uma grande latitude na forma como os deputados se devem expressar, porque eu não quero o "politiquês" a invadir a Assembleia da República. Por isso é que eu digo, o problema do Chega não é só as palavras que usa, é a forma como usa, a forma como ocupa o espaço público agressivamente, como faz claque, como fala em uníssono, o barulho que faz, a permanente pressão que faz sobre as instituições. Isso é que é perigoso, porque o que faz é esticar a corda e tornar muito invisível a fronteira entre o que é aceitável e não é aceitável em democracia", defende.

"Eu não quero que toda a gente diga só frases redondas que, no fundo, não querem dizer nada, porque não ofendem ninguém nem fazem nenhum confronto político"

A Crise nos Partidos de Esquerda e A Ascensão dos Partidos de Direita

Nas eleições legislativas de 2019, o BE contava com 19 deputados na Assembleia da República e, em 2022, esse número foi reduzido para 5 - número que se manteve nas eleições de 2024. Questionada sobre quando e por que razão o Bloco ‘perdeu as pessoas’, a Coordenadora do partido declara: “Não acho que tenhamos perdido as pessoas, porque nunca ninguém tem de facto as pessoas. Há aquela frase feita que ‘ninguém é dono dos votos’. O Bloco teve períodos de crescimento no âmbito de conjunturas muito específicas e períodos de queda com a sua conjuntura e acho que somos capazes de reconhecer que a esquerda está a passar uma fase difícil, em geral. A esquerda em Portugal, a esquerda na Europa, exceto em alguns casos na América Latina, também a esquerda na América Latina. E uma fase difícil, que é uma fase difícil por resultados eleitorais, mas é uma fase difícil por contraofensiva ideológica da direita, quer da direita neoliberal, mas também da sua versão conservadora, que está a disputar a hegemonia cultural, que está a disputar as ideias políticas, que está a introduzir novos conceitos, está a criar condicionamentos à discussão política que são, naturalmente, enviesados à direita”, considera Mariana Mortágua.

No que diz respeito à ascensão dos partidos de direita em Portugal e no mundo, Mariana Mortágua alerta, ainda: “Por isso, o que me preocupa, o que eu quero combater e a procura das repostas não é a procura da reposta para como é que o Bloco ganha este ou aquele eleitor ou como é que ganha um ou dois deputados. A procura é como é que se faz uma contra-hegemonia e como é que se faz uma barreira ao avanço ideológico, político e cultural da direita neoliberal e da direita conservadora mais radicalizada. É que hoje há uma guerra cultural da extrema-direita contra esta liberdade, contra estas causas. (…) O neoliberalismo que se instituiu nas economias ocidentais a partir dos anos 70 foi um desastre. Precarizou, desindustrializou, criou desemprego nos circuitos industriais e fez uma coisa ainda mais danosa, que é dizer a várias gerações, à minha, que o futuro não vai ser melhor que o passado. Que os filhos não vão viver melhor que os pais. E isto era uma coisa que ninguém tinha, que a geração da minha mãe não imaginava. A ideia era de uma evolução constante. E o neoliberalismo acabou com isso. E acabou com a segurança, instituiu um regime de individualismo absurdo, de egoísmo absurdo, de cada um por si”.

“O grande motivo de ataque à campanha do Bloco de Esquerda, nos últimos anos, é porque nós defendemos a habitação com unhas e dentes. Porque nós nos opomos ao alojamento local e aos fundos de investimento”

O Feminismo e o Liberalismo

A convidada do programa partilha também a sua visão do feminino e liberalismo: “Acho que são coisas distintas e incompatíveis, mas acho que têm alianças em momentos muito importantes. É óbvio que há causas em que liberais e não liberais, anticapitalistas, como lhe quisermos chamar, têm momentos de encontro em lutas políticas importantíssimas. E é muito importante que elas aconteçam. Aborto, por exemplo, tudo o que são direitos sexuais e reprodutivos, liberdades individuais. (…) Mas há um problema na ideia de que a ascensão económica ou o liberalismo económico resolvem algumas das raízes da discriminação das mulheres e da condição subalterna das mulheres na sociedade. O exemplo que eu dou é: por cada vez que uma mulher chega a CEO, porque estamos a ‘destruir os telhados de vidro’, essa mulher, para ser CEO, vai contratar, provavelmente, outra mulher para lhe fazer o trabalho doméstico. E esse trabalho doméstico vai ser, provavelmente, garantido por uma mulher racializada, imigrante, por uma mulher que acorda, se for em Lisboa, na margem sul, às 5h da manhã para apanhar o comboio. (…) E é por isso que a ascensão económica não é suficiente. Nós temos que olhar para um conjunto de tarefas que são, hoje, asseguradas por mulheres”.

“Para mim, (o feminismo) é um conceito que incorpora uma noção ‘radical’ de direitos individuais, de liberdades individuais, eu ser dona do meu corpo, eu poder decidir sobre a minha vida, (…) mas que também incorpora uma ideia de justiça económica e de relações económicas”

Numa conversa frontal, Mariana Mortágua fala-nos sobre o seu percurso profissional no Bloco de Esquerda, as suas intenções para o futuro na política, a ascensão dos partidos de direita, como foi crescer enquanto mulher lésbica e a influência dos pais na sua vida.

"Dona da Casa" - São artistas, deputadas, atletas, empresárias e líderes. Têm destaque público, são donas da sua vida e provam que se pode ter vários papéis. Catarina Marques Rodrigues guia conversas sem filtros com mulheres, mas não só. Disponível em antena3.rtp.pt, RTP Play, Spotify, Apple Podcasts e YouTube da Antena 3.