"É sobre as mulheres que pesa um dever moral de exercer o cuidado da família"

"É sobre as mulheres que pesa um dever moral de exercer o cuidado da família"
Maria Manuel Leitão Marques é eurodeputada desde 2019. É formada em Direito e em Economia, e foi Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa. Créditos: © European Union 2019 - Source : EP

Violência doméstica, trabalho não remunerado, cuidado da família, diferença salarial: os obstáculos para as mulheres ainda são muitos, mesmo com os avanços que os países europeus já atingiram comparativamente a outras zonas do globo. Vamos fazer uma ronda pelos principais desafios à igualdade de género na União Europeia e o que se está a fazer para ultrapassá-los, com a eurodeputada portuguesa Maria Manuel Leitão Marques. Membro da Aliança dos Socialistas e Democratas no Parlamento Europeu, faz parte da Comissão dos Direitos das Mulheres e da Igualdade dos Géneros, tendo já sido a sua vice-presidente.

Manter o adquirido

Antes de mais, o grande desafio é sempre manter o adquirido, alerta Maria Manuel: "O que nós pensávamos que estava adquirido para sempre, mas alguns acontecimentos dentro da União – particularmente em países como Hungria e Polónia – nos mostraram que pode ser posto em causa". Efetivamente, este ano, a Hungria tornou-se o único país da UE sem uma única mulher a liderar um ministério: os 14 cargos ministeriais do governo são ocupados por homens, uma situação idêntica à da Polónia, onde menos de 15% dos ministros são mulheres, ocupando o fundo da classificação ao nível dos países da UE.

A Hungria é o único país da UE que não tem uma ministra
A Hungria tornou-se esta semana o único país da União Europeia sem uma única ministra, com a demissão oficial de Judit Varga, na semana passada. #EuropeNews

Também a adesão da UE à Convenção de Istambul (o instrumento legal de combate à violência contra as mulheres do Conselho da Europa) continua limitada pela não ratificação por seis países, incluindo a Hungria. Já em 2020, o governo polaco anunciou a sua intenção de se retirar da Convenção datada de 2014 (mas ainda não decretou qualquer decisão).

Violência de género

Em termos de progresso, a eurodeputada sublinha, em primeiro lugar, a necessidade de trabalharmos mais na questão da violência doméstica e de género, "porque é uma peste que ainda não conseguimos eliminar", além da "nova peste da ciberviolência", tão frequente nas redes sociais, com vinganças, vídeos de cariz sexual e até conteúdos construídos com inteligência artificial – o que agrava ainda mais a situação atual, nomeia a deputada do Parlamento Europeu.

Violação divide Estados-membros em nova diretiva europeia
“Pede ao teu primeiro-ministro ou ministros da Justiça [de qualquer país] que perguntem aos cidadãos, sejam homens ou mulheres, se violação é exploração sexual. Eu diria que qualquer pessoa dirá que sim, mas o argumento do Conselho da UE é que a violação não se enquadra no campo da exploração

Apesar dos progressos que se conseguirá obter com a futura diretiva de combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica da União Europeia, prevê Maria Manuel, "temos, também, de ser mais finos" e perceber os perfis dos abusadores para que a violência possa ser detetada. A especialista alerta que, muitas vezes, a violência começa no namoro mas não é identificada como tal, sendo interpretada como ciúmes e amor quando, na verdade, "são sinais que se transformam em formas muito graves de violência", adverte.

Diferença salarial

Em seguida, a eurodeputada aponta a diferença de remuneração entre mulheres e homens como um tema a não esquecer, sobretudo por ainda ser "significativa". Na UE, o gender pay gap encontra-se nos 12,7% – as mulheres ganham, em média, menos 12,7% por hora do que os homens pelo mesmo trabalho – tendo diminuído apenas 2,8 pontos percentuais nos últimos dez anos.

Um dos mecanismos para compreender e alterar esta disparidade é a transparência salarial, ilustra a eurodeputada, com as empresas a terem de tornar transparente toda a sua folha salarial, para que se saiba se há diferenças e desenhar planos para as eliminar. Esta medida já foi tomada em Portugal: "Eu fico muito contente quando Portugal vai à frente", felicita Maria Manuel.

A diretiva da transparência salarial da UE obriga as empresas a partilharem informações sobre os salários e a tomarem medidas se a disparidade em função do género for superior a 5%. O mecanismo ainda não entrou em vigor, mas não deverá faltar muito. Após esse momento, os países disporão de um prazo de três anos para a transpor. "Eu creio que vamos ter de ir mais longe", adianta Maria Manuel, associando intrinsecamente o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal ao problema da disparidade salarial. Muitas vezes, as mulheres estão menos disponíveis para uma promoção no emprego, tendo em conta que implica mudanças no conteúdo de trabalho ou outra flexibilidade em termos de horário, sublinha em entrevista ao Gender Calling.

"É preciso começar a perceber melhor, ser mais fino nestas causas, para as poder combater."

Equilíbrio entre vida profissional e pessoal

Esta questão é uma das grandes razões para o problema anterior, defende Maria Manuel, que o define como "a infraestrutura": o equilíbrio entre a vida profissional, familiar e pessoal, "particularmente, a distribuição dos deveres de cuidado" porque, na grande maioria dos casos, sobrecarregam mais as mulheres do que os homens, em toda a UE. Esta sobrecarga condiciona as suas carreiras e, consequentemente, os seus salários, prejudicando a sua vida pessoal em termos culturais e muitos outros, explica a eurodeputada.

"É sobre as mulheres que pesa um dever moral de exercer o cuidado: 'Ai, não tive tempo de ir visitar os meus pais, ou sogros, hoje; a minha mãe está doente e tenho de ir visitá-la e dedicar-lhe mais tempo; não dedico tempo suficiente aos meus filhos'... Pesa-nos mais esta falta de tempo para a vida familiar, mas também pessoal – tão importante para o nosso equilíbrio e saúde mental."

"Em todos os Estados Membros, há uma percentagem muito maior de mulheres a cuidar de crianças, a desempenhar tarefas domésticas e a cozinhar": comprova o Eurostat (o serviço de estatística da UE).

O que é que a UE pode fazer para revolucionar um problema tão estrutural? Uma área crucial é a prestação de cuidados de longa duração a pessoas na velhice. A eurodeputada considera que a União Europeia tem de ser bem mais ambiciosa neste domínio e ir um pouco além mesmo em áreas onde a UE não tem competências, tal como aconteceu na Covid-19: "Foi claro que fizemos uma interpretação muito criativa dos Tratados para poder responder à pandemia". Ou seja, na sua visão, a UE poderia ir bem mais longe na sua atenção aos cuidadores, tanto formais como informais.

Ainda não existe qualquer medida legislativa na área do cuidado na UE, "mas poderia haver", até porque a economia de cuidado vai ser cada vez mais importante com o envelhecimento da população.

"As famílias hoje não têm tempo, não estão organizadas para acolher os seus mais velhos como outrora acontecia. Vamos ter de encontrar formas convenientes e saudáveis para resolver este problema em conjunto."

Atualmente, apenas existe a Estratégia de Prestação de Cuidados, com "recomendações dirigidas aos Estados-membros" (E.M.) sobre o acesso a cuidados de longa duração de qualidade a preços comportáveis e com melhores condições de trabalho e conciliação entre vida profissional e vida familiar para os cuidadores.

Política externa

Posto isto, quando olhamos para o resto do mundo, vemos que há muitas mulheres que ficaram para trás em direitos básicos, lembra a eurodeputada. Assim, um dos desafios da UE não pode deixar de ser a importância de incorporar a abordagem da igualdade de género nas relações com outras partes do mundo.

"Veja quantas mulheres são vítimas de MGF: 200 milhões em todo o mundo é o número estimado, podem ser mais… Quantas meninas são obrigadas a casar com quem não escolheram; quantas mulheres ainda não podem conduzir um automóvel nem uma scooter; quantas não têm o direito de se vestir como querem; quantas não herdam os bens da sua família porque não têm esse direito... Portanto, são direitos que para nós são considerados básicos, adquiridos já no século passado, mas que ainda não estão garantidos em muitas partes do mundo
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Educação

Sabemos que a educação é um dos pilares da mudança de mentalidades e atitudes, sendo por isso essencial incluí-la nas medidas de favorecimento à igualdade de género. Maria Manuel explica que a UE tem tido a preocupação de explicar às meninas as vantagens das profissões tecnológicas, como o facto de poderem ter impacto social, serem grandes oportunidades de emprego e bem remuneradas – para, precisamente, evitar o crescimento de uma nova desigualdade. Ao mesmo tempo, é preciso "sensibilizar os meninos de que cuidado não é uma função apenas de mulheres", salienta.

A participação de mulheres em estudos e carreiras das áreas ciência, tecnologia, engenharia e matemática não tem sido promissora. Na UE, o número de mulheres interessadas em participar no setor digital tem diminuído, tanto no ensino superior como no emprego ou no empreendedorismo. Elas representam apenas 20% dos licenciados em tecnologias da informação e comunicação (TIC), refere a Comissão Europeia.

Direito ao aborto

Por último, pelo peso na vida das mulheres e pelo debate que ainda suscita, a perspetiva da inclusão do direito à interrupção da gravidez na UE foi uma questão colocada à eurodeputada.

"Essa é uma área crítica, porque podemos recuar. Devemos defender o adquirido e lutar para que as mulheres de outros Estados-membros tenham os mesmos direitos, tal como temos trabalhado com outras regiões do mundo onde a situação é muito mais difícil do que cá, como a América Latina."

A perspetiva não é elevada. Apesar de a interrupção da gravidez ser uma área suscetível de intervenção aquando da atualização dos Tratados (os acordos vinculativos entre os E.M., definidores das regras de funcionamento da UE) – ainda sem data em vista – o facto é que "poderíamos sempre intervir através da saúde pública, interpretando os direitos das mulheres de saúde sexual e reprodutiva como uma questão de saúde pública, e aí haveria uma leitura mais abrangente das competências dos Tratados" – o que não está a ser feito.

Entrevista a Maria Manuel Leitão Marques no Parlamento Europeu em Estrasburgo

No Podcast Gender Calling, está disponível um episódio sobre a política europeia no que diz respeito à violência de género e à desigualdade. O resumo pode ser lido em baixo, e a conversa pode ser vista no YouTube e ouvida nas plataformas de áudio.

“A política europeia tem impacto direto nos direitos das mulheres”
Afinal, como é que as medidas decididas no Parlamento Europeu têm impacto no dia a dia das mulheres dos Estados-membros? O que é que está pensado naquela que será a primeira diretiva da União Europeia de combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica? Porque é que a