Ivone Gomes: “Tenho colegas de cadeira de rodas que andam todo o dia a pedir esmola”
Criadora da cooperativa de mulheres “Bontche” e administradora financeira da Rádio Sol Mansi, na Guiné-Bissau, Ivone Gomes conta ao Gender Calling como é viver sendo uma mulher com deficiência motora, num país onde a desigualdade e a discriminação ainda estão presentes.
Tem hoje 51 anos de idade, mas foi com apenas 4 que a convidada do Podcast Gender Calling viu a sua vida mudar para sempre, quando uma injeção lhe foi indevidamente administrada: “Tudo começou com 4 anos de idade. Eu era uma criança normal como todas as outras. Com 4 anos fiquei doente, com febre, a minha mãe levou-me para o hospital, deram-me mal uma injeção e eu fiquei assim".
Durante muitos anos, Ivone conseguia deslocar-se utilizando apenas canadianas, mas há uns anos optou pela cadeira de rodas: “Comecei por andar com muletas, fiz uma operação que não deu certo e há 2/3 anos, também por causa do peso, comecei a cair. Como tenho uma perna que é boa, procuro cuidar dela e, por isso, decidi deixar a canadiana e usar cadeira de rodas, para conseguir ter um pouco de autonomia”, confessa a entrevistada.
Perante a sua nova realidade de locomoção, Ivone alerta para os obstáculos que se podem enfrentar, na Guiné-Bissau, para quem necessita de se deslocar em cadeira de rodas: “Ainda há muita dificuldade para pessoas com deficiência, sobretudo para quem anda de cadeira de rodas. Quem está numa cadeira de rodas tem mais obstáculos no terreno, de transportes, etc. Por exemplo, para apanhar um táxi é muito difícil, os motoristas não aceitam. Para eles é uma perda de tempo”, revela.
A convidada do Podcast acrescenta que as dificuldades sentidas pelas pessoas com deficiência estendem-se ao nível financeiro e que as ajudas, tanto do Estado como das famílias, são escassas: “Tenho colegas de cadeira de rodas que andam todo o dia a pedir esmola, porque não lhes deram oportunidade. (…) Uma pessoa com deficiência tem um subsídio ou uma pensão de 10 mil francos CFA (o que equivale a 15 euros) por três meses. Isso não é nada. (…) Nem o Estado nem a própria família sabem lidar com pessoas com deficiência. A pessoa é discriminada dentro da própria família. Dizem que essa pessoa é inútil e preferem investir nas outras crianças que acham que, como não têm deficiência, podem ajudar”, lamenta Ivone.
Apesar deste panorama, a entrevistada afirma ter tido a sorte de crescer numa família onde as oportunidades foram dadas de igual forma a ela e aos irmãos, tendo tido a possibilidade de estudar e de se formar em Economia: “Eu tive sorte em ter uma família que me deu as mesmas oportunidades que deu aos meus irmãos. Consegui estudar, desenvolver os meus talentos. Estudei Economia aqui em Bissau", conta.
Segundo Ivone, o curso de Economia permitiu-lhe organizar e impulsionar o negócio de artesanato que havia começado na adolescência: “Com 14 anos comecei a fazer trabalho de artesanato e o curso de Economia ajudou a organizar esse negócio. Como sou defensora das mulheres e dos seus direitos, quis usar o meu negócio para as ajudar e empoderar. Comecei a juntar as mulheres para um projeto na minha casa, ainda. Depois comecei a costurar”.
Em conjunto com outras mulheres que se juntaram ao seu negócio, a entrevistada abriu uma escola primária e outra de alfabetização para adultos: “Abrimos uma escola primária e uma escola de alfabetização para adultos e saímos de porta em porta para fazer a sensibilização. Sensibilizámos as mulheres para virem aprender a ler e a costurar, e a partir daí comecei a desenvolver mais o trabalho de artesanato”, relata.
Mais tarde, ao perceber que nem todas as mulheres tinham capacidade financeira para adquirir o equipamento necessário para trabalhar, Ivone decidiu criar a cooperativa “Bontche”, que produz vestuário e acessórios, e que tem como missão ajudar e empoderar as mulheres guineenses: “Aquilo que criou a empresa foi o facto de muitas mulheres não terem possibilidade de terem uma máquina para trabalhar. Eu pensei: 'Porque não criar uma associação?’. Como a associação não deu certo, criámos uma cooperativa para as ajudar, vender o produto e partilhar as receitas”, afirma Ivone.
A entrevistada salienta, ainda, que a luta pelos direitos das mulheres é fundamental e que abraçou esta causa como sua: “Vejo que o meu país precisa tanto de um empurrão, sobretudo para as mulheres que estão ainda na sombra. Aquilo que eu aprendi sobre a criação do homem e da mulher foi que Deus criou o homem e a mulher para caminharem juntos, para se completarem. A minha luta é mostrar que a mulher não deve ficar atrás, ela tem de ter a sua voz, tem de dar o seu parecer, tem de se expressar, sem medo”, defende.
Numa conversa que toca temas tão importantes sobre a discriminação para com as pessoas com deficiência e a desigualdade de género, Ivone Gomes partilha a sua história de vida emocionante, os desafios que enfrenta devido à sua condição física e o caminho que tem feito para ajudar as mulheres a alcançarem a sua liberdade.
Catarina Marques Rodrigues entrevistou Ivone Gomes na Guiné-Bissau.
Entrevista disponível no Podcast Gender Calling (em todas as plataformas).