Ivo Canelas: “Continuamos a ser educados em ‘azuis e cores de rosa’ e isto fica-te inculcado”
Já deu vida a dezenas de personagens no teatro, na televisão e no cinema. Vencedor de dois Globos de Ouro e de tantos outros prémios que reconhecem o seu talento, Ivo Canelas é ator, entusiasta da fotografia, do desporto e da psicologia.
A Inteligência Emocional e a Depressão
É no Programa Dona da Casa que Ivo Canelas nos fala sobre a forma como a sua experiência de vida o levou a desenvolver a sua inteligência emocional relativamente cedo: “Tenho sempre alguma dificuldade em falar sobre algumas coisas porque não são exclusivas minhas e as nossas vidas são as somas de ‘montes de coisas’, famílias, amigos, etc., e tenho sempre algum respeito e pudor em relação à privacidade destes ‘montes’ de vida que criam a nossa. A vida ensinou-me a ter que rapidamente desenvolver alguma inteligência emocional, talvez por circunstâncias emocionais daqueles que me rodeavam ou rodearam, e alguns ainda me rodeiam, eu tivesse que colmatar alguma menor disponibilidade… (dos outros para comigo). (…) Até aos 10/12 anos tive uma estrutura muito sólida tanto familiar, emocional, etc. A partir daí foi mais complexo. Mas eu acho que esta fase inicial de quentinho e de estrutura me permitiu depois um mar mais bravo e, se calhar, também eu próprio ter uma capacidade de filtragem e um olhar que me permitiu tirar as coisas do bom e do mau (…) e que me deu - e acho que não é uma má análise ou arrogância dizer - alguma inteligência (emocional)”, aponta.
O ator partilha, ainda, a sua perspetiva sobre a depressão, por ter vivido próximo de alguém com a doença: “Na família há sempre a importância de alguma solidez emocional, de alguém que vá à frente a desbravar o mato ou a dizer-te como é que se calhar o mato se pode desbravar, enquanto vamos definindo quem somos. E há momentos óbvios em que todos nós, qualquer um de nós, pode fragilizar e perder essa capacidade de levar o outro e, então, por necessidade, tens que encontrar tu respostas de uma forma mais solitária, se calhar. Acho que a adolescência tem esse lado ‘sedutor’ (da tristeza). Acho que é um período muito propenso a complicações, a confusões individuais e mentais e acho que é um lado fascinante. Eu decidi ser gótico. Portanto, havia uma propensão natural para alguma tristeza e contemplação e de namoro com essa tristeza. Nunca tive nenhuma depressão diagnosticada, mas havia um namoro”, confessa o entrevistado.
"Aquilo que eu vi ou, se calhar, a sorte daquilo que eu vi mais aquilo que me foi transmitido, permitiu-me aprender e observar muitas coisas que eu hoje uso na minha vida e muito disso vem de ficção ou da soma de histórias de ficção"
Ser Homem e os Estereótipos de Género
Navegando o tema do género, da liberdade e do que é ser homem, Ivo afirma: “Eu acho que (ser homem) é muitas coisas e que bom para a minha geração (…) acho que tem sido muita coisa. É um olhar múltiplo, é uma coisa de: ‘ah, era isto. Ah, não é isto. Ah, não é aquilo’. Uma mudança constante porque não só nós, individualmente, estamos todos a mudar, como tudo a nossa volta está a mudar. E essas duas coisas faz com que seja sempre tudo diferente. (…) Eu sempre gostei desta dualidade, sempre gostei daquilo que nós ‘somos suposto ser’. Uma certa ideia clássica, antiga, antiquada, de masculinidade, associada a força, associada a maior distância emocional, a uma maior clareza intelectual. Mas também sempre tive a sorte de, através do contacto com o sexo oposto, de experimentar tudo o resto, tudo e o seu oposto. E é nesse sítio onde eu sou mais feliz, quando encontro esse equilíbrio dessas duas grandes linhas”, revela a Catarina Marques Rodrigues.
Questionado sobre os estereótipos de género e a dificuldade que, por vezes, se tem em desafiar esses estereótipos, Ivo responde: “Acima de tudo é educação. (...) Eu lembro-me de ser miúdo, ir comprar uns ténis que achava lindos, roxos, mas que tinham um tacão, que eu hoje, em retrospetiva, entendo que é um tacão feminino. A minha tia, que me fazia todas as vontades, lembro-me do desconforto dela a dizer ‘Ivo, mas são estes sapatos que tu queres?’. E não havia nada em mim, ainda, que soubesse ler o que é que eu estava a comprar. Eu estava obviamente a comprar uns ténis de miúda por causa do tacão. Para mim era só aquilo que eu gostava e pronto.”
"Continuamos a ser educados em ‘azuis e cores de rosa’ e isto fica-te inculcado"
A Peça Todas as Coisas Maravilhosas e Ser Ator
Foi em 2019 que Ivo Canelas subiu ao palco com o monólogo Todas as Coisas Maravilhosas da autoria de Duncan Macmillan. O convidado encenou e deu vida a uma personagem enigmática numa peça que aborda temas como a família, a fragilidade da vida, o amor, o suicídio e a depressão. Com várias temporadas, Ivo representou para mais de 30.000 pessoas, numa digressão que encantou em vários pontos do país. Questionado sobre a ligação à sua vida real, o artista responde: “O que é maravilhoso, para mim, no trabalho de ator é este posicionamento pessoal, este sítio onde tu encontras, onde tentas mostrar ou esconder partes de ti da forma mais objetiva possível, que sirvam o contar de uma história. É um espetáculo que acho que, uma das razões do seu sucesso, é a forma arquétipo como é escrito. Todos nós achamos, inicialmente, que é a minha história, e um esforço meu de me aproximar o máximo possível. O que eu conheço está lá tudo, o que eu não conheço estudei e investiguei e tudo isso está embrulhado com a enorme confusão que o espetáculo pretendia e que eu levei às últimas consequências da confusão de autoria. (…) O resultado final e o mais interessante de todos era o público ter a certeza que era a sua própria vida (…)”, explica.
Durante a entrevista, Ivo faz diversas reflexões sobre o sucesso (da sua peça de teatro e não só), o ego e a importância de não criarmos demasiadas expectativas, destacando: “Eu acho que esse é o grande paradoxo da representação e da vida, provavelmente, que é esta enorme vontade de fazeres muito bem e seres incrível e chegares ao fundo de ti mesmo (…) e há um momento em que não podes querer mais nada e tens só que fazer. E, muitos dias, vais ficar tão aquém de tudo isso que tu sonhaste, mas provavelmente nos dias em que tu fizeres a força toda para seres o maior, vai ser o dia menos interessante. (…) Esta ideia cultural de que temos que ir buscar as coisas e trabalhar muito para as agarrar e quase ir ‘roubar’ as coisas para conseguir tê-las, é verdade com certeza, no sentido de há todo um esforço que temos que aplicar, até um certo momento, e depois, a partir de dado momento, quando sei lá… quando a vela está cheia é confiar que o vento continua."
"Porque toda e qualquer força que apliquemos vai ser tensão, já não é concentração, já é o nosso orgulho a dizer ‘eu queria isto’, eu também quero tanta coisa… e é no momento em que tu dizes ‘o que vier, veio’ que tudo pode acontecer"
O Sonho Internacional
O ator fala ainda sobre os seus períodos mais calmos a nível profissional e cogita sobre o sonho que se mantém de trabalhar fora de Portugal: “Eu tenho tido a sorte, ao longo dos anos, de ter estado quase sempre a trabalhar ou ter bons períodos de trabalho e ter alguns períodos de algum sucesso mais claro e depois um abrandamento. (…) Ando sempre numa onda para cima e para baixo que me agrada. Uma espécie de entrar e sair… uma correu bem e agora deixa-me recolher um bocadinho, até para não aborrecer os senhores. E nesse recuar tenho tido a capacidade, até agora, de voltar a preencher-me e encontrar a vontade - e até a oportunidade certa - de fazer outra coisa que possa ter algum resultado interessante. (…) Claro (que continuo a ter o sonho de trabalhar em Nova Iorque)! Não sei se é Nova Iorque, mas internacionalmente. Estive lá alguns anos, sempre a estudar, a tentar. Nunca consegui acertar em nada assim de incrível. Continua a ser, profissionalmente, o meu grande sonho. Nova Iorque foi sempre o meu sítio mistificado. Foi sempre o meu sítio de sonho, foi colonizado culturalmente muito cedo, os meus pais estudaram na América. Hoje sou mais abrangente. Acho que tenho um leque maior de interesses no que é o internacional. O inglês continua a ser a minha língua de preferência (…) e são as histórias. Acima de tudo, são as probabilidades das histórias”.
"Eu acho que é muito importante essa possibilidade de pararmos um bocadinho"
Numa conversa que nos leva a uma bonita jornada de reflexão, Ivo Canelas fala-nos sobre a sua infância, a depressão, ser homem e ator, a peça Todas as Coisas Maravilhosas, o sucesso, como lidar com o ego, o peso das expectativas, as aprendizagens dos 50 anos, a importância do Natal e como foi vivendo a época ao longo dos anos e o sonho americano.
"Dona da Casa" - São artistas, deputadas, atletas, empresárias e líderes. Têm destaque público, são donas da sua vida e provam que se pode ter vários papéis. Catarina Marques Rodrigues guia conversas sem filtros com mulheres, mas não só. Disponível em antena3.rtp.pt, RTP Play, Spotify, Apple Podcasts e YouTube da Antena 3.