Isabel Jonet: “É justo ter-se a expectativa de uma vida melhor. Mas não podemos estar à espera que a assistência nos dê tudo"

Isabel Jonet: “É justo ter-se a expectativa de uma vida melhor. Mas não podemos estar à espera que a assistência nos dê tudo"
Isabel Jonet, Presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, é a 2ª convidada de Catarina Marques Rodrigues no programa "Dona da Casa", na Antena 3.

Licenciada em Economia pela Universidade Católica, voluntária desde os 12 anos, Presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome e Fundadora do Projeto Social ENTRAJUDA, Isabel Jonet é uma mulher de causas, que acredita no poder da caridade enquanto "forma de amar" e na capacidade que o voluntariado tem para salvar vidas. Nesta entrevista, fala sobre a pobreza, sublinha o consumismo de hoje e revela as suas convicções pessoais sobre o aborto e a eutanásia.

A Pobreza em Portugal

Voluntária no Banco Alimentar há 32 anos, a convidada do Podcast Dona da Casa conta-nos a sua visão sobre a pobreza em Portugal e a importância de não se normalizar esta condição: “Eu penso que cada um de nós é responsável pela sua própria vida e é condicionado não só pela sua situação presente, mas também pela sua evolução, e pelas oportunidades e escolhas. Ser pobre não deve ser aceite e infelizmente, hoje, é aceite como algo que é para toda a vida. Em Portugal, temos uma transmissão intergeracional da pobreza que condiciona muitas das escolhas que, até, são feitas a nível político. (…) Muitas vezes, as próprias pessoas (que estão na pobreza) deixam de ter energia e capacidade (para sair da situação de pobreza), mas também não têm oportunidades para o fazer”, afirma.

A entrevistada menciona, ainda, as dificuldades que a população portuguesa tem tido em conseguir que os seus rendimentos sejam suficientes para as suas despesas, perante o contexto económico do país, e afirma que as medidas sociais que têm sido tomadas pelo governo não estão a ser suficientes: “Penso que as medidas sociais que foram tomadas pelo atual e anterior governo não causaram grande evolução (no caminho contra a pobreza). Temos, em Portugal, uma pobreza estrutural que é severa: 19% da população portuguesa vive em situação de pobreza. Muitas pessoas têm um contrato regular e recebem o seu salário, mesmo que não seja o salário mínimo, e não é suficiente. Primeiro, porque a habitação ocupa uma parte enorme dos rendimentos familiares e depois porque existem muitas mais necessidades de consumo atualmente – é tudo mais caro. Há pessoas que trabalham e que o dinheiro que levam para casa não chega até ao final do mês porque as despesas são muitas”, confessa Isabel.

Os Imigrantes e o Aumento da Pobreza

Relativamente às adversidades socioeconómicas vividas em Portugal, a Presidente do Banco Alimentar salienta, ainda, a relação entre o aumento do fluxo de imigrantes e as condições precárias que muitos dos habitantes do país estão a viver: “Esta situação agudizou-se muito com o fluxo enorme de migrantes que temos hoje em dia em Portugal. Temos muitas pessoas que olham para Portugal como um país onde é fácil entrar. Vêm muitos imigrantes, nomeadamente da Índia, do Paquistão, de Bangladesh, que vêm porque, mesmo que vivam mal cá, vivem muito melhor do que nos seus países. Estas pessoas ganham ao dia e, muitas vezes, têm uma precariedade laboral que não são admitidas por ninguém em Portugal”, declara, em entrevista a Catarina Marques Rodrigues. Perante as dificuldades laborais e financeiras que estes migrantes sentem, muitos veem-se obrigados a recorrer ao Banco Alimentar para conseguirem sobreviver, garante: “Temos também muitos imigrantes brasileiros que se organizam em comunidades, têm muita inter-ajuda e têm outra capacidade que é a comunicação. Pedem muita ajuda ao Banco Alimentar mas sabem comunicar. Há muitos imigrantes que vêm para Portugal à procura de uma vida melhor, muitos são homens que entram legalmente no país e depois não têm o emprego que estavam à espera. Muitas vezes, os homens imigrantes pedem ajuda a instituições e são essas instituições de acolhimento que depois pedem apoio ao Banco Alimentar”, conta.

As Mulheres são quem mais pede ajuda ao Banco Alimentar

As mulheres (portuguesas e não portuguesas) são as que mais se socorrem do Banco Alimentar, atualmente, mesmo quando têm, por vezes, mais do que um trabalho, segundo a Presidente da instituição: “A maioria das pessoas que pede diretamente ajuda ao Banco Alimentar são mulheres que muitas vezes trabalham e não num só emprego. Têm trabalhos muito precários, andam a correr o dia inteiro, têm os filhos na creche ou nas escolas - são verdadeiras heroínas! Eu conheço muitas e tenho contacto com pessoas que se não fosse a ajuda alimentar que recebem (através de uma instituição) não conseguiam dar a volta à vida. Para além da ajuda alimentar que recebem, estas pessoas têm ali (nas instituições) um lugar de esperança”, assegura.

A Pobreza Absoluta e a Pobreza Relativa

No que diz respeito à pobreza, existem dois conceitos que têm vindo a ser cada vez mais falados: a pobreza absoluta e a pobreza relativa. Este último está relacionado com a perceção que cada pessoa tem sobre a sua situação de pobreza. Questionada por Catarina Marques Rodrigues, Isabel Jonet explica os dois conceitos: “Nunca podemos perder de vista que na Europa e em Portugal há muito poucas pessoas em pobreza absoluta, felizmente, porque há respostas e mecanismos públicos que fazem com que uma pessoa que esteja sem nada encontre apoios. O conceito de pobreza relativa é muito interessante porque, como em Portugal temos salários muito baixos, mas temos acesso a tudo aquilo que é bom, as pessoas criam esta noção e esta necessidade de ter muito mais bens do que aquilo que efetivamente necessitam. (..) A necessidade que temos de coisas mais eficientes, mais adequadas à nossa vida, faz com que, se não as tivermos, temos a sensação de que estamos em falta”, refere.

Com isto, a entrevistada diz que todos temos o direito de desejar uma vida melhor, mas defende que devemos lutar para que isso aconteça: “É justo ter-se a expectativa de uma vida melhor. É, aliás, essa ambição que faz com que as pessoas possam melhorar a sua vida. Aquilo que é mais contestável é acharmos que temos direito a ter esses bens sem termos de trabalhar para eles. Não podemos estar à espera que a assistência nos dê tudo, não querer trabalhar e querer ter o rendimento social de inserção”, argumenta.

O Voluntariado atualmente e o Papel do Privilégio

Imersa no mundo do voluntariado desde criança, e enquanto Presidente do Banco Alimentar, Isabel Jonet já contactou com milhares de voluntários ao longo da vida e conta-nos, nesta entrevista, como é que o perfil do voluntário se tem alterado ao longo dos anos – desde a antiga perceção de que o voluntariado era uma atividade praticada somente por mulheres idosas ou por motivações religiosas, até à participação ativa dos jovens atualmente: “Realmente, o voluntariado alterou-se completamente em Portugal. Antes, o voluntariado era percecionado como uma ‘coisa de mulher velha’ e hoje é transversal a todas as idades e toda a sociedade. O Banco Alimentar muito contribuiu para desenvolver o voluntariado jovem em Portugal e hoje temos milhares de voluntários que participam não só nas campanhas dos 21 bancos alimentares, como também no dia-a-dia e temos, ainda, muito voluntariado empresarial”, afirma.

Sobre a ideia de que fazer voluntariado é um luxo que pertence às pessoas mais privilegiadas, Isabel Jonet responde: “Aquilo que eu vejo no meu dia-a-dia é que os voluntários que são mais regulares e persistentes não são as pessoas com mais rendimentos. Temos voluntários que trabalham oito horas por dia, que não são pessoas de posses, mas que sentiram na pele as dificuldades e que vêem o banco alimentar como um sítio onde podem participar para que outros tenham uma vida mais fácil".

A Decisão de se tornar Voluntária a Tempo Inteiro

Antes de se tornar voluntária a tempo inteiro, Isabel trabalhava na área na qual se licenciou (Economia) e fazia voluntariado duas tardes por semana, mas rapidamente percebeu que se queria dedicar totalmente a esta missão. Para tal, prescindiu do seu ordenado e revela no Programa Dona da Casa como tomou esta decisão: “Deixei de ter o meu dinheiro, no sentido de ganhar o meu ordenado, mas na minha família nunca houve o ‘teu dinheiro e o meu dinheiro’, há uma gestão do dinheiro comum da casa. Nisso, o meu marido foi extraordinário. Continuou a haver o dinheiro que é comum, que é de todos, mesmo vindo só de um lado. E nunca me arrependi da minha decisão (de deixar de ter ordenado) nem nunca fui acusada de não contribuir para aquilo que era o dinheiro da casa. Tenho a certeza que os meus filhos são muito melhores pessoas porque viveram mergulhados no voluntariado”.

Ser Mulher no Setor Social

Questionada sobre se alguma vez sentiu algum tipo de discriminação enquanto mulher líder de uma organização do setor social com grande projeção pública, Isabel garante que não: “Eu nunca senti qualquer tipo de discriminação cá em Portugal. Quando fui para Bruxelas trabalhar para a mesma seguradora para a qual trabalhava cá, aí foi a única vez que eu senti que as mulheres não eram intelectualmente e profissionalmente tão consideradas como os homens. Ao fim de 6 meses, eu disse ao meu marido que não ficava ali, onde desconsideram as mulheres. Aqui em Portugal nunca senti e, inclusive, o setor social, onde trabalho há mais de 30 anos, é um setor onde é dada muita relevância às mulheres. É um setor que não é maioritariamente feminino, ao contrário do que se pensa, mas onde há um respeito enorme por todas as mulheres e onde há uma total igualdade de oportunidades”.

O Catolicismo e a visão sobre a Comunidade LGBTQ+, a Eutanásia e o Aborto

Neste segundo episódio do "Dona da Casa", ainda houve espaço para se falar sobre a visão de Isabel Jonet acerca da comunidade LGBTQ+, a eutanásia e o aborto. Começando pelas questões LGBTQ+, afirma: “Eu digo que na minha configuração do mundo cabem todas as pessoas. A escolha que é dada à forma como as pessoas se relacionam cabe a cada pessoa. Eu não tenho que julgar os outros; cada um de nós sabe a forma como arruma a sua vida e como a vive”.

No que concerne à eutanásia e ao aborto, declara-se contra: “Sou contra tudo aquilo que traga ao critério de homens decisões que não devem ser deixadas, por vezes, com alguma displicência. (…) Sou contra o aborto, em princípio em todas as circunstâncias. Obviamente que haverá interrupções da gravidez que são justificadas por razões médicas e, aí, a ciência impera. (…) Acho que nós não podemos decidir sobre aquilo que é a vida de um ser que nem sequer pediu para nascer. Sou muito pela prevenção de gravidezes que não se querem; acho que se deve educar para que não se tenha que chegar a esse ponto de decidir. Se as pessoas não têm condição para ter aquele filho há outras soluções como a adoção. Acho que não podemos matar uma vida que não é nossa”.

Numa conversa sincera, que aborda diferentes temas, Isabel Jonet partilha com os/as ouvintes do "Dona da Casa" algumas fases do seu caminho pessoal e profissional, as conquistas do Banco Alimentar, a fundação da instituição ENTRAJUDA, como é ser mulher no setor social e os sonhos que ainda tem por concretizar.

"Dona da Casa" - São artistas, deputadas, atletas, empresárias e líderes. Têm destaque público, são donas da sua vida e provam que se pode ter vários papéis. Catarina Marques Rodrigues guia conversas sem filtros com mulheres, mas não só. Disponível em antena3.rtp.pt, RTP Play, Spotify, Apple Podcasts e YouTube da Antena 3.