Inês Herédia: “A pessoa que estava à frente da decisão sobre a campanha achava que uma pessoa gay se calhar não era a melhor para vender aquela marca”
Com um percurso em teatro e em televisão, Inês Herédia é uma das atrizes com mais destaque em Portugal. Estudou em Londres, no Conservatório, e desde então, já pisou vários palcos, abraçou diversos projetos televisivos e, atualmente, podemos vê-la a dar vida à icónica personagem “Nelinha”, na novela “Festa é Festa” (TVI). Uma mulher da arte, da fé, do amor e da família.
Depressão e Crise de Identidade
Foi com apenas 22 anos de idade que a convidada do Programa Dona da Casa partiu para Londres em busca do sonho de representar. Foi naquela cidade que Inês deu os primeiros passos enquanto atriz, mas foi também onde viu os primeiros sintomas de depressão a manifestarem-se: “A depressão começou em Londres, mas só percebi, ou só a enfrentei, quando cheguei cá (a Portugal). Quando fui para Londres tinha vinte e dois anos, mas era como se tivesse dezoito ou dezassete; eu era muito naive (ingénua). Na altura (ainda em Londres), eu não estava diagnosticada, mas acabei por ser quando vim para cá, estava mesmo doente e não tinha consciência disso”, confessa.
No que diz respeito à causa desta depressão, Inês destaca a crise de identidade que atravessava na altura quando, por um lado, tinha a certeza da sua homossexualidade mas, por outro, ainda estava a gerir aquela assunção: “(A causa da depressão) era, primeiramente, uma questão de identidade: eu sabia perfeitamente, embora não assumisse ainda, que gostava de mulheres e já tinha tido relações (com mulheres), mas ainda estava numa fase em que (pensava) que tinha sido só aquele caso específico, porém eu sabia que isso não era verdade. Se calhar é estranho as pessoas perceberem, mas eu tinha estas duas certezas: Por um lado, (a certeza de que) eu não sou lésbica e, por outro lado, eu tenho a certeza absoluta de que sou – eu vivia nesta dualidade”, admite a atriz.
A Fé
Para além de todas as questões que geralmente surgem durante uma fase de descoberta de identidade, a entrevistada conta-nos que houve outros fatores relevantes no processo: “Tudo isto jogava também com a minha fé que era enorme, eu estava completamente dentro da Igreja Católica. Era catequista, estava em grupos de jovens. O meu crescimento na Igreja foi bastante independente, não teve nada a ver com a minha família nem com guias, foi um percurso que fiz sozinha. E eu acho que (este percurso) teve muito a ver com essa procura de ‘Quem é que eu sou? O que é que está a acontecer?’. No meio dessa depressão toda, desse levantamento todo interior, eu sempre tive, e tenho, uma coisa que é muito irritante às vezes, que é eu questionar muito. E não me basta o ‘porque sim’, nunca me bastou. Portanto, ao mesmo tempo que eu tinha estas certezas absolutas todas, eu fazia as perguntas: ‘Mas se isto é amor porque é que está errado?’"
"Eu ia procurar essas respostas todas e corria a Bíblia de trás para a frente, precisava de respostas lógicas porque nada daquilo me parecia lógico"
Inês acrescenta, ainda, que hoje em dia a sua relação com a fé é diferente e que consegue ter outra abordagem em relação ao modo como a fé dita a sua vida: “Hoje em dia, para mim, isto já não é um argumento; se me disserem ‘Ah porque é pecado (duas mulheres ou dois homens terem uma relação), eu já nem vou falar no Novo Testamento. Felizmente, eu consegui sair desse sítio, desse lugar em que o que está aqui (na Bíblia) é lei. O primeiro passo que dei foi distinguir entre Igreja e Deus/Cristo e Fé. E esse é o primeiro passo porque tu acreditas numa Igreja que é Santa, ou seja, quando estás completamente dentro da igreja, apesar de ser feita de Homens, a Igreja é santa, é como se fosse abençoada. Mas, quando tu tens anos e anos de tanta coisa má a acontecer dentro da Igreja… também tens muita coisa boa que a Igreja fez, mas há muita coisa má, tu começas a questionar. E eu sei que isto parece muito básico para quem não tem fé, mas para quem tem não é nada básico".
As Reações da Família à sua Homossexualidade
Aos 26 anos, Inês Herédia decide assumir a sua homossexualidade perante a família e admite que o grande catalisador desta decisão foi ter-se apaixonado profundamente: “Eu lembro-me super bem, tinha 26 anos acabados de fazer. No meu caso, (a decisão de contar à família) foi porque estava loucamente apaixonada. A minha família é muito unida, para mim nunca esteve na equação viver uma vida paralela. Na minha cabeça, isto tinha de funcionar tudo junto, porque eu não consigo funcionar sem a minha família. Disse à minha mãe: ‘Mãe, eu tenho uma namorada’ e acho que ao princípio ela não percebeu bem o que eu tinha dito. A minha mãe ficou em choque profundo, achou que seria uma fase. Não foi fácil para a minha mãe ouvir, mas ela nunca me disse qualquer coisa que me magoasse", conta a atriz a Catarina Marques Rodrigues.
"Eu sabia que os meus pais iam precisar de tempo, porque não era uma realidade que eles conhecessem"
A entrevistada acrescenta que acredita que não havia qualquer suspeita da parte da família e que, para si, não existem perguntas proibidas: “Não havia a mínima suspeita da parte deles. Na altura, havia muito a ideia de que uma mulher lésbica é necessariamente uma mulher com uma expressão de género mais masculina, que não é o meu caso. Uma das coisas que foi perguntado, dentro do meu seio familiar, foi se eu ia cortar o cabelo e eu não percebi a pergunta. Até podia ter acontecido eu estar a esconder a minha expressão de género para não se perceber que era homossexual, mas não era o caso. Eu acho que não há perguntas proibidas e acho que é muito perigoso se as houver, porque se não o fizerem, há uma parcela da população que não vai perceber porque é que é preconceituoso - esta é a minha resposta que pode ser muito diferente de muitas pessoas”, sublinha.
A Relação com Gabriela Sobral
No que diz respeito ao seu casamento com Gabriela Sobral, atual diretora de produção de conteúdos da Plural e antiga co-diretora de programas da SIC, a convidada conta-nos como foi trabalhar no mesmo canal que a companheira e como é que a relação foi recebida no meio: “Vou começar por sublinhar uma parte que disseste que acreditas que seja um meio bastante aberto a várias expressões de género e diferentes orientações sexuais, mas não é. Parece que é, mas não é. No teatro é bastante mais aberto, tudo o que envolve câmara, seja televisão, seja cinema, não é. Ainda não é um lugar aberto, principalmente para os homens. A partir do momento em que um ator homem tem alguns trejeitos no seu dia-a-dia ‘mais femininos’ automaticamente acreditam que este ator não é capaz de fazer uma personagem com uma expressão de género mais masculina. (No caso especifico de Inês) não foi fácil nem é fácil. Na altura, estávamos as duas na SIC; depois, a Gabi saiu da SIC, ficou dois anos em casa, e eu nesses dois anos fui para a TVI e depois, quando eu já lá estava, a Gabi foi para a Plural”, recorda a atriz.
Inês ressalta, igualmente, que houve uma tentativa de associar o seu trabalho à sua relação amorosa e explica como é que encara, hoje em dia, a situação: “Quando estávamos as duas na SIC, sim (houve uma tentativa de associar o trabalho de Inês ao relacionamento com Gabriela), principalmente porque na SIC foi o primeiro projeto que eu fiz em televisão e, na esmagadora maioria das vezes, há pouca disponibilidade para se perceber o que é que as pessoas já fizeram. Eu estava há quase 10 anos a fazer teatro, tinha o conservatório, tinha estudado em Londres, já tinha algum percurso. Vai sempre haver qualquer coisa (que é usada para afastar uma pessoa da ascensão), principalmente se fizeres um bom trabalho”, lamenta a atriz.
"Vai sempre haver qualquer coisa e eu habituei-me a isso desde muito cedo: ou era porque era beta, ou era porque era gay, ou porque não era beta o suficiente, ou porque não era gay o suficiente"
A Discriminação por ser uma Mulher Homossexual e o Pinkwashing
Depois de se ter assumido publicamente como uma mulher lésbica, Inês Herédia revela ter sido vítima de discriminação em alguns trabalhos publicitários: “Aconteceu-me várias vezes. Há duas ou três situações em que eu sei que essa foi a razão e (soube) porque este mundo é muito pequenino, tu conheces sempre alguém dentro da marca ou dentro da agência. Não me interessa entregar as marcas porque nas situações em que aconteceu, pelos menos as que eu sei, eu acho que teve a ver com as pessoas e não com as marcas, ou seja, a pessoa que, naquele ano estava à frente do departamento comercial ou à frente daquela decisão sobre aquela campanha, acontece que era homofóbica ou que achava que uma pessoa gay se calhar não era a melhor hipótese para vender aquela marca. Não acredito que tenha sido uma decisão de visão da marca. Tu nunca tens essa explicação (de que não foste escolhida/o por seres homossexual). Tens, por exemplo, três pessoas para uma determinada campanha, tens de decidir entre as três, depois reduz para duas pessoas e, de repente, já és o único perfil que encaixa exatamente no que eles querem, mas não ficas - achas estranho. Acabam por não pôr ninguém e vai uma modelo, mas passado dois anos descobres porquê”, relata.
Por outro lado, a entrevistada admite também ter sido vítima de pinkwashing (quando as marcas se aproximam da comunidade LGBTQ+ para passar a imagem de que simpatizam com a causa, principalmente durante os meses em que esta causa é celebrada): “Houve uma altura em que achei mesmo que o mundo estava a mudar, as marcas estão a perceber que têm de se reposicionar, que têm de incluir e que querem, efetivamente, ser inclusivas e fui vítima desse pinkwashing. Chegava ali ao mês de junho e eu chegava a ter sete e oito marcas a querer fazer a sua comunicação do mês do Pride e depois, o resto do ano… radio silence (abstinham-se). Seres gay-friendly não é só celebrares o mês do Pride, aliás, está bem longe disso”.
"A mim faz-me muita confusão quando em junho, de repente, vês todas as figuras públicas e todos os jornais com bandeiras, etc., mas depois, cada vez que sai uma notícia que fulana X foi assassinada porque era lésbica na Venezuela ou porque o casamento gay agora é legal na Tailândia, não vês uma figura pública a partilhar, a não ser os gays"
A Maternidade
Finalmente, a entrevistada conta-nos como é ser mãe de dois gémeos de seis anos e algumas das preocupações que uma família LGBT+ pode ter: “Sim, essa foi a nossa primeira preocupação assim que os pusemos na escola: ‘Somos duas mãe, como é que é? Há mais casos (na escola)? Quantos?’. E, de facto, é engraçado porque a resposta das pessoas é como se isto já nem sequer fosse um tema, mas na prática é tema, principalmente se forem os únicos na turma. Da mesma maneira que o miúdo que tenha um pai ou uma mãe que tenha morrido ou que o pai tenha ido ‘comprar cigarros’ e não voltou… Esta criança vai ter uma realidade diferente durante aquele ano. As escolas têm de ter a noção de que ainda é tema. “(Os meus filhos) ainda não perguntaram porque é que têm duas mães, mas já disseram a um amigo, que estava a chorar e a perceber, naquele ano, que não tinha mãe porque tinha morrido, e um dos meus filhos foi ao pé dele e disse ‘Olha, eu não tenho pai, mas tenho duas mães, posso-te emprestar uma. Queres?’. Isto mostra que os meus filhos estão completamente resolvidos com o assunto. Para eles é indiferente se são dois pais ou duas mães, ou se é uma mãe e um pai. O que lhes faz confusão, ou o que lhes aperta o coração, é quando um desaparece, quando um pai ou uma mãe morre ou te abandona”, partilha Inês.
Numa conversa fluída, leve mas profunda, Inês Herédia leva-nos ao seu passado, à crise de identidade que teve, à depressão, à sua relação com a fé, à representação, ao amor por Gabriela e pelos filhos, e partilha alguns dos desafios que enfrentou enquanto mulher homossexual e que a comunidade LGBT+ pode encontrar.
"Dona da Casa" - São artistas, deputadas, atletas, empresárias e líderes. Têm destaque público, são donas da sua vida e provam que se pode ter vários papéis. Catarina Marques Rodrigues guia conversas sem filtros com mulheres, mas não só. Disponível em antena3.rtp.pt, RTP Play, Spotify, Apple Podcasts e YouTube da Antena 3.