Daniela Bento: "Foi no meu coming out enquanto mulher trans que despertei na totalidade para a desigualdade de géneros"

Daniela Bento: "Foi no meu coming out enquanto mulher trans que despertei na totalidade para a desigualdade de géneros"
Daniela Bento, engenheira de software e mulher trans não-binária, responde ao "De interesse público"

É engenheira de software e formada em Astronomia e Astrofísica, adora escrever e está a aprender a arte de fotografar. Além disso, é também uma mulher trans não-binária – quando nasceu, atribuíram-lhe o género masculino, e assim viveu em sociedade durante quase 3 décadas.

É já há largos anos ativista pelos direitos LGBTQIA+ e, desde os vários coming outs por que passou, é também especial defensora das questões da saúde mental. Afinal, os processos nem sempre foram fáceis. Daniela Bento responde às perguntas do questionário "De interesse público".


Eu não seria eu sem...
Um caderno e caneta/lápis para escrever. Mais do que terapêutico, escrever ajuda-me a refletir sobre o mundo, sobre o tempo e o espaço. Se tivesse que construir um saco do auto-cuidado, este teria de ter certamente uma coleção de cadernos e canetas prontas a ser usados. A necessidade de escrever é algo que vem desde sempre. Seja em formato público (blogue, jornais, revistas) ou de cariz pessoal, como diários e outros textos.

As qualidades essenciais para o meu sucesso são…
A resiliência, a organização e a empatia. Não sou de desistir com facilidade de obstáculos que encontrei durante a minha vida. Muito pelo contrário. Desenvolvo novas aprendizagens no topo desses obstáculos. A organização tornou-se uma ferramenta essencial para crescer e manter a estabilidade de que preciso. Empatia porque me conecto muito facilmente com as emoções e sentimentos de outras pessoas.

O livro feminista que toda a gente devia ler é…
“Excluded: Making Feminist and Queer Movements More Inclusive” de Julia Serrano.

Eu já desejei ser um homem quando…
Nunca desejei ser um homem, apesar de ter “vivido” socialmente enquanto tal durante 27 anos da minha vida.

As características que mais aprecio nas mulheres são…
Vale a pena perguntar: O que são características de uma mulher? Acho que preciso responder a esta pergunta primeiro, antes de poder falar em características que aprecio em mulheres. Cada pessoa tem a sua vivência própria e a sua marca no mundo.

A minha primeira memória é…
As minhas primeiras memórias conduzem-me a um tempo de várias dificuldades, de medos e de incertezas. É por isso difícil para mim escrever/falar sobre estes tempos. Ainda é um exercício que necessito fazer.

Um talento meu secreto é...
Não diria secreto, mas acho que o meu maior talento relaciona-se com a minha escrita. A capacidade de colocar em palavras o que sinto e como o sinto, é fundamental para mim e para o meu desenvolvimento pessoal.

O maior obstáculo que já ultrapassei foi…
Ter conseguido recriar uma vida inteira, ter renascido na minha identidade, depois de um período bastante difícil, em que misturei vários coming outs com problemas de saúde mental que foram graves para a minha vida durante alguns anos.

O meu maior medo é…
Perder as minhas capacidades ao longo da minha vida devido às minhas crises de saúde.

A figura histórica com que mais me identifico é…
Não consigo ter referências.

O ponto-chave que me fez despertar para a desigualdade de género foi…
Ainda que já tivesse noções sobre desigualdade de género nos anos anteriores, foi apenas quando fiz o meu coming out enquanto mulher trans (e posterior coming out enquanto mulher trans não-binária) que despertei na totalidade para os problemas de desigualdade de géneros. Digo géneros porque também se verifica desigualdades quando falamos de pessoas trans e/ou não-binárias.

O que mais gosto no meu trabalho é…
Sentir o espírito de equipa para conseguir construir melhores diálogos, apoio e construções para o futuro. A sensibilidade das pessoas que me rodeiam é um fator importante para ter gosto pelo trabalho que realizo.

Um local feminista que recomendo é…
Não conheço muitos locais, mas alguns que costumo frequentar (pelo menos antes da pandemia), seriam a Zona Franca e o espaço Sirigaita, ambos em Lisboa.

A palavra que mais digo é…
São palavras associadas a bengalas de discurso quando estou mais ansiosa ou com mais dificuldade em gerir o pensamento, como, por exemplo “Lá está” e “Pois”. Noutros momentos, claro, “pessoa”.

Uma coisa que toda a gente pode fazer para contribuir para a valorização das mulheres é…
Escutar, escutar e escutar. É necessário escutar mais a voz de mulheres e outros géneros que não homens cis.

Eu sinto-me no meu melhor quando…
Quando consigo entender como me sinto, seja no espectro da felicidade, tristeza ou outra emoção. A capacidade de reconhecer os meus sentimentos é um fator essencial para o meu bem estar e para me sentir em sintonia comigo mesma.

Uma lição que aprendi e que levo para sempre é…
O desenvolvimento das minhas capacidades para o auto-cuidado e auto-conhecimento. Mais do que nunca, tenho aprendido a escutar os meus estares e emoções e entendê-los como parte da vida, como parte do meu crescimento. A gestão do auto-cuidado foi muito importante para mim, principalmente nestes tempos de pandemia e isolamento social em que vivemos.