Doulas: “Queremos desconstruir a crença de um parto com medo, que dói. Podemos ter prazer no parto"
Vários países europeus têm a doula enquanto profissional regulamentada, mas Portugal ainda não. Que falta faz o seu acompanhamento durante a gravidez na saúde física e mental, não só da grávida, também do resto da família? No SNS, a mulher tem de escolher se vai o pai do bebé ou a doula para a sala de parto, já que desde a COVID-19, só pode entrar um acompanhante, contam as doulas Laylla Coelho e Cinthia Matos ao Gender Calling.
Citando uma notícia do jornal JPN, a equipa que está a criar o documentário “Guardiãs do Nascimento” salienta que Portugal tem uma prevalência de parto instrumentado três vezes superior à média de outros 11 países europeus em procedimentos que podem ser considerados violência obstétrica. Laylla e Cinthia defendem que é necessária uma discussão pública sobre a violência exercida sobre os corpos das mulheres, com vista a partos mais naturais e a decisões mais conscientes das grávidas, considerando opções seguras para a sua saúde.
No seguimento do evento de apresentação do documentário – cuja reportagem podes ler aqui–, o Gender Calling entrevistou as argumentistas para conhecer a realidade da função das doulas.
Como é que funciona a profissão de doula? Têm de ter um curso? É obrigatório existir uma doula nos partos?
Laylla: A doula, em Portugal, ainda não é uma profissão regulamentada; noutros países já é, como no Brasil. Aqui em Portugal, existem várias formações para se ser doula. A doula auxilia no processo emocional, físico e terapêutico de mergulho da grávida no caminho que esta quer percorrer para o parto e pós-parto e auxilia na descoberta interna e individualizada da mulher.
Cinthia: Dando informação sobre uma panóplia de alternativas que existem e ainda são pouco conhecidas, nós tentamos abrir possibilidades para que realmente os casais e as pessoas grávidas possam escolher com a maior consciência possível.
Porque é que ainda não é uma profissão regulamentada?
L: É só uma questão de tempo e, até, de organização interna de nós, doulas, porque é uma profissão ‘nova’, ou seja, a função de auxiliar e dar todo o apoio para as grávidas sempre existiu, mas, antes, era feito pelas mães e tias em grupo; atualmente, nas grandes cidades, não existe esse familiar que tem conhecimento sobre o processo de gravidez, por isso é como se fosse uma profissão nova. Hoje, este conhecimento da gravidez dado pelas doulas tem até embasamento científico, porque o nosso trabalho e as respostas que damos são sempre fundamentados na ciência.
C: Também existe uma associação acabada de nascer, em 2022, a Doular – Associação Portuguesa de Doulas – que está a trabalhar para que a doula seja vista como uma profissional de saúde e a analisar o que seria necessário para a regulamentação. Porque já somos centenas de doulas em Portugal, a desenvolver um acompanhamento individualizado que faz toda a diferença, e já existem montes de estudos que auxiliam neste acompanhamento e na diferença que faz.
Essas formações são dadas por qualquer tipo de instituição? Já existem nas faculdades ou institutos superiores?
L: Não, ainda é uma formação à parte, feita por outras mulheres que já foram doulas e fizeram formações no estrangeiro, como em Inglaterra ou Brasil, e agora trazem isso como uma vivência para Portugal.
C: Há várias escolas em Portugal e no Reino Unido (país onde a doula já é considerada profissional de saúde); há, também, quem ensine em certas associações. Existe uma variedade de formações e formadores, muitas vezes, são pessoas que já têm bastante experiência, já ‘doularam’ durante muitos anos e querem transmitir tudo o que aprenderam.
Como é no resto da Europa? A maioria dos países tem a doula enquanto profissional regulamentada ou a maior parte são como Portugal?
L: A maioria dos países tem, só que muitas vezes a doula é vista como outros profissionais, como a parteira ou a fisioterapeuta; mas sim, os outros países têm. Uma coisa muito importante, e há estudos científicos a mostrarem isso, é que quando se tem a doula, a quantidade de intervenções nos partos é menor: as taxas de cesarianas são menores e a mulher sente-se muito mais amparada, apoiada e – o principal foco – empoderada. O corpo é dela e nós explicamos como se pode empoderar neste processo fisiológico, porque todas sabemos parir, assim como sabemos nascer, mamar, comer. Parir não é diferente destes processos, em que temos de ouvir o nosso corpo, aprender sobre e ‘ir com ele’. Nas minhas sessões, eu trabalho para desconstruir as crenças de um parto com medo, que é o que existe hoje na sociedade, de que o parto dói, é muito mau e um risco, e desconstruir isto para criar, dentro da própria mulher, a certeza de que todas as mulheres antes de nós pariram, principalmente antes da década de 60 e da instrumentalização. E era muito mais prazeroso, porque elas podiam ter a liberdade de movimento, de sentir e perceber o próprio corpo. O parto pode conter orgasmos, pode ser um momento fisiológico prazeroso… Afinal, é o nascimento do ser mais importante que existe – o nosso filho.
C: É também com este olhar que nasce o documentário, para resgatar o prazer, respeito e amor a parir, porque, realmente, pode ser uma das experiências mais transformadoras que uma pessoa pode ter. Quanto mais pessoas tiverem acesso a esta, melhor, porque melhor será o mundo.
Em termos de legislação pública nacional, quais são os profissionais mínimos obrigatórios a que uma pessoa tem direito para acompanharem a sua gravidez?
L: No SNS, a pessoa tem direito ao médico de família e depois é acompanhada pelo hospital onde vai parir, se ela decidir um parto hospitalar. Achamos que isto poderia ser mudado no SNS, como noutros países, por exemplo Países Baixos e Alemanha: onde existe a opção de a mulher ter o parto e ser assistida pela parteira em casa, opção apoiada pelo serviço nacional de saúde, que paga esse serviço; assim como existem casas de parto, que é um misto entre uma casa e um hospital, mas não é um hospital (com toda a parte médica envolvida), é uma casa adaptada só para partos, acompanhada por enfermeiras parteiras.
C: Num parto de baixo risco, não é preciso um obstetra, este só entra numa sala de parto quando há um risco ou anomalia. Daí nas casas de parto não serem precisos obstetras, porque apenas gravidezes de baixo risco são atendidas aí. É mesmo importante todas as mulheres perceberem que podem parir onde quiserem, e mesmo se uma grávida viver em Faro, se quiser vir a Guimarães, pode, o hospital estará ali para a acolher. Temos o direito de escolher onde queremos ter os nossos filhos, seja em qualquer hospital, casa ou apartamento.
L: Se a grávida quiser ter em casa, em Portugal, esse pagamento tem de ser feito pela própria. Sendo que o parto domiciliário só deve ser realizado, e as parteiras só o fazem, se realmente for uma gravidez de baixo risco, se o bebé estiver cefálico e a mulher tiver passado bem a gravidez.
C: As condições são sempre a mãe e o bebé estarem bem, a partir daí tudo é possível. Num hospital do serviço público, quem pode estar no bloco de parto são as parteiras e a família; se houver alguma complicação, entra o obstetra.
L: Hoje em dia, a mulher pode escolher como acompanh ante a doula. Antes da COVID-19, podiam entrar o pai e a doula como acompanhantes; após a COVID-19, não podemos mais entrar como segunda acompanhante, tivemos mesmo um retrocesso, porque isso faz falta para as mulheres, que precisam de continuar as massagens durante o trabalho de parto, precisam da segurança, do olhar e daquela empatia que foi criada com a doula. A grávida tem de escolher se vai o pai do bebé – que é uma pessoa super importante, na maioria das vezes não substituível – ou a doula.
C: Cada doula tem a sua forma de ‘doular’, seja em que estrutura for. Pode, por exemplo, estar no hospital continuamente com a grávida, e é esta presença que faz muita diferença. Em Portugal, por norma, temos relação prévia com o casal, porque nos procuram durante a gestação. Se houver vontade do serviço nacional de saúde, existem mil e uma maneiras de a doula poder estar nos partos com as famílias.
As doulas têm sido mais pretendidas e procuradas pelas pessoas grávidas em Portugal?
L: Sim, com certeza, porque, hoje em dia, as mulheres têm mais acesso a conhecimento e a partir daí, das redes sociais e da informação, conseguem perceber que existe um nicho de conhecimento, amorosidade e de segurança que lhes vai dar aquilo que falta (principalmente que falta num atendimento não individualizado). Todas nós procuramos o cuidado e a doula ajuda no processo de autocuidado durante a gravidez.
C: Também se começa a falar mais das doulas e continuamos a ter de desmistificar o seu papel, a dizer que existem, o que é que fazem e o que não fazem. É uma das razões para estarmos a organizar este documentário: dar a conhecer aquilo que fazemos, amamos e qual é a nossa paixão.
L: Porque a doula não acompanha partos, não faz o parto, faz, sim, o processo de caminho, junto com a grávida, de parto, pós-parto, amamentação, etc.. Um parto nada mais é do que uma passagem, a grávida deixa de ser a mulher que foi para nascer uma mãe, é uma mudança drástica de vida, que pode ser super positiva e empoderada, em que a mulher se sente mais forte, ou pode ser uma mudança em que ela tem de trabalhar emocionalmente depois do parto, porque criou traumas ou dores.
C: Também tem havido um aumento da quantidade de pessoas a tirarem formações para serem doulas.
L: Nós costumamos dizer que todas as mulheres podem ser doulas, porque para cada mulher existe uma doula. É muito lindo este trabalho conjunto, entre profissionais somos muito unidas, porque sabemos que as mulheres vão encontrar aquela pessoa com quem estabelecem empatia: é mais uma resposta do coração do que do cérebro. “Quem é a mulher que eu quero que esteja comigo no momento mais importante da minha vida, que é o nascimento do meu filho?”
C: É importante lembrar que também existem doulas homens e de outras identidades de género.
Acham que em Portugal os profissionais de saúde disponibilizam às pessoas que querem engravidar e às grávidas toda a informação que é necessária para que possam tomar decisões sobre o seu corpo considerando todos os fatores relevantes?
L: Não, de forma alguma. A mulher, hoje, tem a possibilidade de ir atrás do conhecimento de uma forma muito mais poderosa do que as nossas mães e avós, porque o conhecimento está aí, na internet, por exemplo. Mas a mulher tem de se empoderar nessa busca, é uma procura interna. O SNS dá a base do conhecimento só para saber se a mãe e o bebé não vão morrer, basicamente, como costumamos dizer. Mas a mais-valia, que é empoderar essa mulher – primeiro, é um caminho interno, de ouvir o seu próprio ser – mas, segundo, também entra na questão de se o sistema der muito este poder para a mulher, nós vamos ter muito poder e seria antagónico relativamente a todas as outras coisas.