Cara Coroa: "Recebemos centenas de mensagens de adolescentes que perceberam que é possível ser feliz quando se é homossexual"
Pedro e João são estrelas no YouTube, Instagram e TikTok. Criam conteúdo sobre comida, testam receitas de pratos, partilham a sua vida enquanto casal e usam também o humor para produzir vídeo. No mês do Dia dos Namorados, o Gender Calling quis conhecer melhor o casal e perceber os preconceitos que ainda existem em relação à homossexualidade.
Como se conheceram?
Pedro (P): A história de como nos conhecemos foi muito engraçada. Num dia, em 2008, eu e o João estávamos no mesmo restaurante em festas de aniversário de pessoas diferentes. Mas, por coincidência, tínhamos amigos em comum em ambas as festas e, por isso, o João fez questão de se ir apresentar à mesa onde eu estava. Aquilo ficou-me na cabeça e, no dia seguinte, adicionei o João ao meu hi5 (uma rede social antiga) e começámos a conversar. Apesar de só termos começado a namorar 4 anos depois, em 2012, estivemos sempre em contacto. Parecia que não conseguia ver o que estava à frente dos meus olhos.
João (J): Eu tentei várias vezes conquistar o Pedro, mas não foi fácil! Eu tentava, mas ele não tinha abertura suficiente para entrar numa relação. Em 2012 encontrámo-nos, espontaneamente, numa festa em Lisboa. E, desde esse dia, tornamo-nos inseparáveis. Há quase 11 anos que somos a cara e a coroa da mesma moeda.
Como foi o processo de se assumirem como homossexuais?
P: O João foi a pessoa que me ajudou a perceber que podia ter um futuro feliz com alguém. Antes de o conhecer, não me conseguia imaginar numa relação duradora. Ele ajudou-me a curar a ideia que eu tinha do que era ter uma relação homossexual.
J: Quando eu tinha 17 anos, lembro-me de ter vergonha de ser gay. Chegava a ser asfixiante pensar que o era. Quando entrei para os Morangos com Açúcar, conheci tanta gente da comunidade LGBT, que percebi que podia ser eu próprio. Mas só senti a confiança para assumir a minha sexualidade quando reencontrei o Pedro, em 2012. Aos bocadinhos, fomos contando à nossa família e amigos, mas não precisámos de contar a quase ninguém, porque as pessoas percebiam pela nossa química. As pessoas percebiam que éramos um casal, mesmo sem nunca mostrarmos afetos em público. Efetivamente a sociedade mostrava-nos que dois homens demonstrarem afetos em público era errado e, portanto, nunca tivemos esse hábito.
Foram bem aceites na vossa família? Qual foi a reação das pessoas que vos rodeiam?
P: Nós decidimos dar espaço e tempo para que as pessoas à nossa volta se fossem apercebendo. Isso ajudou a que fosse um processo muito “smooth” para todos. Eu sinto que temos de respeitar que a nossa realidade não é a realidade dos outros e, por isso, é necessário dar o tempo e a “educação” necessária para que haja uma maior recetividade. Mas temos a sorte de termos a melhor família do mundo que sempre nos apoiou e aceitou tal como somos.
J: Acho que chegou a um ponto que aquilo que tínhamos era tão evidente que para certas pessoas não era preciso dizer nada. Continua a haver a ideia de que se tu és homossexual, tens de conversar sobre isso com os teus pais, o que não acontece se fores heterossexual. Sinto que, se não formos heterossexuais, temos de ter uma “justificação” e isso não é verdade. Temos de caminhar para um mundo em que essas conversas já não façam sentido.
Quais foram os principais preconceitos que sentiram? Ainda são os mesmos?
P: O maior preconceito que sentimos é confundirem, muitas vezes propositadamente, a nossa sexualidade com o nosso género. Isto é, para nos magoarem, tratam-nos por “ela”. No entanto, os maiores preconceitos foram, sem dúvida, na altura da adolescência. Isso fez-nos lutar para ter um núcleo de amigos muito próximos que são uma muralha à nossa volta, que nos defendem e nos celebram. Mas sei que, infelizmente, vamos ter de lidar com preconceitos durante a nossa vida toda.
J: Nós recebemos alguns comentários maldosos no Instagram e no YouTube. Há uns anos magoava-nos, agora não. Atualmente, sinto-me tão bem como sou que simplesmente ignoro.
P: Além disso, estão a tentar ridicularizar a parte da minha vida que mais felicidade me traz: a minha relação com o João. E, por isso, não há nada que alguém me possa dizer que me vá afetar.
Que conselhos dariam ao Pedro e ao João de 16 anos?
P: Primeiro, dava-lhe um abraço muito grande, porque sinto que foi nessa altura que deixei de acreditar na bondade de toda a gente e acabei por mudar muito a minha forma de ser. Acabei por me tornar uma pessoa muito reservada e sofri muito por não partilhar aquilo que sentia com os outros. Além do abraço, dizia-lhe para confiar mais nas pessoas que gostavam de mim.
J: Se eu encontrasse o João de 16 anos, dizia-lhe para não ter medo e para se abrir mais com a família nuclear (com os meus pais e irmã), porque eles me vão amar independentemente de tudo.
Acham que haver mais representatividade na ficção era importante?
P: É importante haver representatividade, não só na ficção, como em todas as áreas, seja em cargos políticos, na apresentação de programas de televisão, em cargos de chefia, entre outros. Falta também representatividade em questões como o género e a raça. Há um longo caminho pela frente.
J: Eu sinto que, na ficção, ainda faltam exemplos de personagens da comunidade LGBT que não tenham algum drama associado à sua sexualidade. Por norma, especialmente nas novelas portuguesas, sempre que há uma personagem homossexual, ela está num grande conflito. Ou seja, não se trata a homossexualidade com a mesma normalidade com que se trata a heterossexualidade. Isto é um problema grave, porque inibe as pessoas de conhecerem mais facilmente outras realidades. O facto de termos crescido sem referências de pessoas homossexuais retardou o processo de assumirmos a nossa sexualidade. Assim, quando a nossa relação fez 10 anos, quisemos publicar um vídeo que mostrasse a toda a gente que o nosso amor é exatamente igual àquele que um casal heterossexual sente. Quando publicamos o vídeo, recebemos centenas de mensagens de adolescentes a dizer que tinham assumido a sua sexualidade perante os pais porque, através do vídeo, perceberam que era possível ser feliz quando se é homossexual. E é tão bom saber que o vídeo que foi “o nosso grito” mudou a vida de tantas pessoas.
Sentem-se incluídos no Dia dos Namorados? Nas campanhas, nos anúncios, nas publicações?
P: Eu sinto-me mais representado pelas marcas no mês de junho. A maioria só se lembra que existem casais não heterossexuais em junho. Já em Fevereiro e no resto do ano, não me sinto minimamente representado.
J: Há marcas que até incluem a comunidade LGBT nas suas campanhas de Dia dos Namorados, apenas por estratégia, porque na realidade não são assim tão LGBT-friendly. A representatividade tem de ser algo contínuo e não apenas em datas específicas. Nós não aceitamos convites de marcas que só se lembram da nossa comunidade apenas nestas datas pontuais.
P: Felizmente, já trabalhámos com algumas marcas que nos celebram o ano inteiro e fazem parte do nosso percurso.
O que é, para vocês, o amor? Descrevam-no numa palavra.
J: O amor é conexão. O amor tem várias formas, mas é sempre uma conexão muito profunda entre duas ou mais pessoas. Quando começamos a namorar com alguém, ainda não conhecemos a pessoa ao ponto de a amar. Só com o tempo é que vamos olhando para ela e pensando “eu gosto mesmo de ti”. O amor não é algo estanque. O amor vai mudando e transformando-se.