Dino D’Santiago: “Eu consegui ver a minha mãe numa daquelas mulheres que, no silêncio, vão limpando tudo para que (os outros) possam desfilar pela vida, enquanto elas estão na sombra”

Dino D’Santiago: “Eu consegui ver a minha mãe numa daquelas mulheres que, no silêncio, vão limpando tudo para que (os outros) possam desfilar pela vida, enquanto elas estão na sombra”
O artista e ativista Dino D' Santiago foi o primeiro homem convidado do "Dona da Casa"

É um apaixonado pela arte nas suas mais diversas formas e o seu vasto talento dá cartas na música, na poesia das suas canções e, ainda, no desenho. Vencedor de diversos prémios, Dino D’Santiago é um nome incontornável da música portuguesa e tem vindo a construir um caminho pautado pela luta contra o racismo, a discriminação e a igualdade.

O Papel das Mulheres na Vida de Dino

A essência feminina e, em especial, as mulheres cabo-verdianas são para o convidado do Podcast Dona da Casa uma fonte de admiração e inspiração. A mãe Andreza, a avó Tereza, a sobrinha Eva ou a grande fadista Amália Rodrigues são apenas algumas das mulheres que marcam a vida pessoal e profissional de Claudino Pereira.

Questionado sobre as discriminações que as mulheres cabo-verdianas sofrem, como os trabalhos árduos que têm de desempenhar ou a falta de poder de decisão na sua vida pessoal, e que Dino foi testemunhando ao longo da vida, o entrevistado partilha: “(Quando penso em exemplos práticos de discriminação) vem logo (à cabeça), sem dúvida, a minha mãe, por tudo o que eu vi. Ver os dedos (dela) cheios de pus, de tanto lavar e esfregar a loiça nos restaurantes, de (vê-la) trabalhar, primeiramente, num hotel onde ela era empregada de limpeza e ter um patrão que se insinua e lhe diz ‘Vocês em África faziam mais do que isto’ - que ela percebeu que já era assédio (sexual) e despediu-se automaticamente. (…) (Temos também o exemplo) das amas da Cova da Moura que finalmente, no ano passado, viram o seu estatuto de ama ser reconhecido e legalizado”.

“Na minha vida, sempre tive mulheres muito fortes. A minha irmã é mais nova, mas sempre reivindicou muito o seu espaço. Foi a única a formar-se. Sempre foi uma família muito matriarcal e a minha avó é o pilar desse matriarcado.”

Sobre estes exemplos de discriminação o músico acrescenta: “Eu não precisava de sair da minha história para ter vários casos como este. Por exemplo, duas senhoras, a Ginha e a Nanda, que limpavam o Coliseu, no momento em que eu recebi 3 prémios dos Prémios Play, os prémios da música portuguesa. (…) No final (da entrega de prémios) disse-lhes que elas iam comigo para a passadeira, porque elas estavam sempre a limpar a passadeira para a próxima pessoa. Elas disseram ‘não, não podemos’ e eu respondi ‘podem, sim. Quando acabar isto, tiram as vossas batas e vêm comigo para a passadeira, cada uma com um prémio’. Uma era de Cabo Verde e a outra da Guiné. O orgulho delas naquele momento… era como se fosse um filho a receber (um prémio) e a proporcionar-lhes aquele momento. E eu consegui ver a minha mãe numa daquelas mulheres que, no silêncio, vão limpando tudo para todas as pessoas que são consideradas ‘gente’ possam desfilar pela vida, enquanto elas estão na sombra”, conta.

O Racismo

Apesar dos progressos que têm sido conseguidos nos últimos anos, a luta contra o racismo ainda enfrenta um longo caminho para se poder considerar como vencida. Dino D’Santiago é um dos protagonistas desta luta em Portugal e conta-nos como foi crescer enquanto pessoa negra no Algarve: “Em miúdo, ouvi muito isso (a frase ‘Preto, vai para a tua Terra!’) quando jogava futebol. E não era só isso, era muito mais agressivo. Eu não conhecia melhor, sempre ouvi isso na escola, nas brincadeiras com outros miúdos. A pessoa tentava sempre pegar (em alguma característica), se fosse da etnia cigana, se usava óculos, etc., aqui a única gravidade é que quando é uma pessoa negra tu só  ‘pegas’ pela cor, porque sabe-se que aquilo é ofensivo na forma como a própria pessoa vai olhar para a sua pele, porque nós não crescemos a amar a pele que vestimos. Crescemos a tentar camuflá-la de alguma forma para que não fosse tão explícita, precisamente por isso, pelas várias micro-agressões. Até as raparigas, fossem elas caucasianas ou negras, gostavam do ‘mulato’, como chamavam naquele tempo - estou a falar numa linguagem que se usava na altura e que, hoje, com o que sei e o que a vida já me mostrou, não utilizo. Todos os que se aproximavam da minha tez, garantidamente eram pedreiros, jardineiros, eram pessoas que infelizmente para a sociedade, e para quem se queria sentir atraída por um rapaz com a minha tez, achava que a ascensão social (destas pessoas) não ia ser boa e perdiam o interesse”, afirma o entrevistado.

"Quando tu és adolescente, aquilo parece só um insulto do desporto, ou seja, normalizas algo tão bárbaro e que merece ser condenado porque não conheces melhor."

Acerca do preconceito que existe relativamente aos homens negros, Dino salienta: “No que diz respeito a relações conjugais, associava-se o tom da pele à capacidade económica. Eu cheguei a ouvir isto em Angola e em Cabo-Verde, então nem preciso de chegar a Portugal: ‘Filha, a pessoa para te relacionares é com um homem branco, não é com um homem negro'. Depois, pior do que isso, em Cabo Verde, de forma muito subtil, (havia) a questão de que, se tu fosses bem mais negro, aproximava-te do continente africano quando as pessoas do arquipélago queriam sentir-se mais próximas do ocidente (da Europa). Felizmente, começa a haver menos, mais ainda há muito essa quase que prepotência”, aponta.

As Relações Inter-raciais

A propósito de relações conjugais, Dino partilha a sua experiência de relacionamento com mulheres caucasianas e fala-nos sobre as diferentes perceções que existem em países como o Brasil e Portugal: “As únicas pessoas que me disseram isso (questionar o seu relacionamento com uma mulher caucasiana) foi no Brasil e eu depois tive de entender a visão delas. Ou seja, cada vez que um negro no Brasil conseguia algum sucesso na sua área, a primeira coisa que acontecia era ter uma mulher branca, loira, mas depois ia para uma favela e tinha filhos com mulheres negras. Deram-me vários exemplos (no Brasil), eu achei aquilo surreal e disse que a realidade em Portugal é completamente diferente. Felizmente aqui em Portugal nunca ninguém teve a coragem de o dizer (de questionar a ‘cor’ das suas parceiras), mas se tivesse, eu perguntaria ‘O que é que tu tens a ver com isso?’ ou seja, se a questão é amor, não tens sequer o direito de opinar sobre a minha história. Quando tu te apaixonas por alguém não é pela cor, tu apaixonas-te pela pessoa”, destaca o músico e ativista no programa de Catarina Marques Rodrigues.

Em relação à discriminação que, por vezes, um casal inter-racial sofre, o entrevistado ressalta: “Ninguém sabe da odisseia que um casal vive. A avó da minha primeira namorada não me queria conhecer. Depois, eu entro na Operação Triunfo e ela diz ‘Ele é tão querido, trá-lo cá a casa’ e eu disse que não. Mas felizmente a minha namorada teve a coragem de o partilhar comigo e era uma pessoa muito justa, sempre foi frontal. E depois fui vendo coisas também muito cruéis do outro lado, ou seja, raparigas negras que (achavam que) namorar com um homem negro não era bom, que os homens negros não são fiéis. Quando tu pensas, historicamente, o homem negro era utilizado pela estrutura escravocrata para procriar, para que aquele filho que saísse de uma mulher escravizada se tornasse propriedade daquele dono. Depois, historicamente, vês muito o desapego do homem negro perante a sua família e faz-te pensar que o homem negro é isto ou aquilo, mas temos de recuar na história e entender o porquê de haver tantas mães negras sozinhas com os filhos. Não podemos somente dizer aquilo que eu muitas vezes ouço que é ‘têm mais filhos porque querem, que se cuidassem’, sem entender a cultura”, defende.

"Durante séculos, no Brasil principalmente, os homens negros eram usados para procriar, como um não-ser, um não-humano."

Ser Pai e Começar a Fazer Terapia

Pai de dois filhos, Dino fala-nos sobre a sua experiência na parentalidade e a forma como a terapia o ajudou a perceber-se melhor enquanto pessoa e enquanto pai: “Ainda estou a construir esse lugar de me achar um bom pai. Eu queria muito ser pai e, felizmente, sou. De forma egoísta, estou a crescer muito enquanto ser humano graças aos meus filhos e tenho vontade de aqui permanecer (no mundo) mais tempo. Quando nasceram os meus filhos, comecei a pensar ‘O que é que eu posso fazer para me manter mais tempo vivo e o que é que eu posso fazer para não interferir tanto com os problemas que tive na minha infância e que ainda moldam o homem que sou?’, para que eu não passasse isso para os meus filhos. Foi com o nascimento do Lucas que comecei a fazer terapia. Eu tinha prometido à mãe do Lucas que, quando ele nascesse, eu ficaria mais tempo em casa e aconteceu precisamente o oposto. Comecei a ficar apavorado que faltasse dinheiro e comecei a trabalhar mais para que não faltasse nada. Houve um momento que dei por mim e disse ‘O meu filho já tem mais dinheiro no banco do que eu’. Como houve escassez (na minha infância), eu não queria que lhe faltasse nada, então trabalhei para ele. Mas, ao mesmo tempo, tu não estás em casa, não vês as coisas bonitas que poderias ter visto”, lamenta.

No que concerne ao papel que a terapia teve na sua vida, o entrevistado adiciona: “(Para além de perceber o medo que tinha da escassez), eu passei a saber realmente quem sou  - até aos 38 anos eu não sabia. Eu tentei projetar, (ao longo) da minha vida toda, aquilo que eu achava que o meu pai, a minha mãe, os meus irmãos, as minhas namoradas iam gostar que eu fosse. Foi sempre uma tentativa de agradar o mundo, porque me era fácil. (…) Por ter crescido desta forma tão religiosa em que dás a outra face, em que tens de aguentar as provações, eu levei muito essa martirização para a minha vida e impediu-me de simplesmente ter o direito de dizer 'não me apetece fazer isto'. Na terapia, a minha psicoterapeuta puxou-me para a terra. E não foi só ela, fui tendo várias pessoas que me foram ajudando. Quando me apercebi que realmente um não (aos outros) era um sim a mim próprio, a minha vida mudou radicalmente”, afirma.

Ser um Bom Marido  

Por fim, Dino D’Santiago partilha com os espetadores do programa a sua visão sobre ser um bom marido e o caminho que tem feito para se tornar num: “Não me considero um bom marido e vou explicar-te o motivo. Eu sinto que, no que diz respeito à construção do que é um homem numa relação conjugal, ainda herdei muita coisa do patriarcado. Tenho dificuldade em reparar que a casa está suja; para mim está tudo bem, desde que eu possa ficar aqui um bocadinho no sofá. Estou a trabalhar muito nisso. Percebi que precisava de crescer para ser um homem de verdade, um homem que olha para a sua companheira como um ser igual e um ser que também merece descanso. Então, ainda não me sinto um bom marido porque sinto que ainda estou a trabalhar para ser um melhor ser humano. Quanto ao que faço bem, pelo menos o que acho que faço, é o facto de não desistir de procurar ser melhor pessoa. Assumo os meus erros quando entendo que estou a errar. (…) Para além disso, eu faço de tudo, todos os dias, para que ela seja o melhor possível enquanto ser, enquanto mulher, tento sempre que ela não veja limites para a tua existência”, considera.

Numa conversa envolvente que aborda temas tão importantes como o racismo, a discriminação e o preconceito, Dino D’Santiago fala sobre a sua vida pessoal, as dificuldades que enfrentou a nível social e financeiro, os relacionamentos, as mulheres que marcaram a sua vida, concretizar o sonho de ser pai e a associação Mundu Nôbu que criou com a intenção de “não deixar que nenhum sonho morra, antes de nascer sequer”.

"Dona da Casa" - São artistas, deputadas, atletas, empresárias e líderes. Têm destaque público, são donas da sua vida e provam que se pode ter vários papéis. Catarina Marques Rodrigues guia conversas sem filtros com mulheres, mas não só. Disponível em antena3.rtp.pt, RTP Play, Spotify, Apple Podcasts e YouTube da Antena 3.